FOLHAPRESS – Ainda Não É Amanhã”, longa-metragem de estreia da diretora pernambucana Milena Teixeira, que chegou aos cinemas na última quinta-feira (5), gasta seus primeiros minutos situando o espectador sobre quem é a protagonista Janaína (Mayara Santos). Ela namora Jeferson, que é entregador de aplicativo, mora com a mãe e a avó em um conjunto habitacional de Recife e é a primeira da família a entrar em uma faculdade, onde é parcialmente bolsista.

As cenas não servem meramente para apresentar Janaína, mas para deixar claro o que está em jogo para ela ao ser confrontada com uma gravidez inesperada. Sabemos, desde o início, que essa gravidez virá, já que a premissa do filme é a de acompanhar o caminho da protagonista na busca por um aborto clandestino.

Janaína não se encaixa em nenhum dos permissivos legais para o aborto no Brasil, onde só é possível interromper a gestação em casos de estupro, risco de vida para a gestante ou anencefalia fetal. Por isso, só lhe resta encarar o périplo pelo qual, estima-se, cerca de meio milhão de mulheres brasileiras passam todos os anos, segundo a Pesquisa Nacional de Aborto de 2021: o da busca por um jeito seguro, barato e sigiloso de abortar.

O que se segue é um relato fiel e sensível sobre o aborto clandestino, e escancara a desigualdade de acesso ao procedimento no Brasil. Janaína de cara descarta a ideia de uma clínica, que seria muito cara, busca informações na internet, tenta métodos caseiros, vende coisas para pagar medicamentos, leva golpes. Se fosse rica, seu problema teria sido resolvido muito mais facilmente, o filme deixa claro.

A estudante passa por esse caminho enquanto esconde a gravidez tanto da mãe, a cabeleireira Luciana (Clau Barros), que é tão nova que na primeira interação das duas há uma ambiguidade sobre se elas são irmãs, quanto da professora da faculdade que lhe deu uma vaga de monitoria.

É um retrato fidedigno: o estigma em torno do aborto e a própria criminalização tornam o silêncio uma constante, em que mulheres que já passaram pelo procedimento relatam terem escondido a gravidez da família -mesmo em casos de aborto legal– ou que amigas descobrem aos sussurros que já viveram a mesma experiência.

Ao mesmo tempo, o filme explora a rede feminina de apoio que se forma em torno do aborto. Janaína encontra guarida em todas as mulheres para quem abre o jogo sobre a gravidez e elas são fundamentais para o desfecho da personagem.

O filme mostra, inclusive, como a solidariedade feminina se organiza em vários níveis dentro do cenário clandestino. Mulheres conseguem abortos para outras mulheres que os desejam há milênios. E o filme explora a função das “socorristas”, como se chamam na América Latina hoje as mulheres que se arriscam para fazer chegar gratuitamente a outras os medicamentos abortivos como misoprostol e a mifepristona.

Talvez a principal fraqueza do filme seja justamente a sua vontade de tornar a dificuldade de acesso ao aborto o único conflito da trama, blindando o caminho de Janaína em outras áreas. Por exemplo, o filme faz questão de enfatizar que ela e o namorado usavam camisinha e que, portanto, não tinham “culpa” da gestação.

Janaína é uma excelente estudante, uma filha modelo, uma neta que quer um diploma para que a avó possa parar de trabalhar como faxineira. Não há nenhum traço, ao longo de todo o filme, que a desabone.

É compreensível que, num país onde há tantas paixões inflamadas sobre o aborto, o filme tente criar uma protagonista com quem é impossível não empatizar. Ao fazer isso, porém, ele reforça a ideia de que é preciso atenuantes para que a escolha de não manter uma gestação seja aceitável, e se torna quase paradidático em alguns momentos.

Isso dito, “Ainda Não É Amanhã” tem o mérito de mostrar muito explicitamente o que fica normalmente relegado ao âmbito privado e, pior, ao sensacionalismo.

Isso porque o filme é totalmente sóbrio e fora dos lugares-comum do aborto cinematográfico. Não espere agulhas de tricô, rios de sangue e emergências médicas. A verdadeira emergência, aqui, é o quão árduo é o caminho de Janaína para acessar um procedimento que é, afinal, simples e seguro, de acordo com a OMS, a Organização Mundial de Saúde.

Ainda Não É Amanhã

Onde Nos cinemas

Classificação 14 anos

Elenco Mayara Santos, Bárbara Vitória, Clau Barros

Produção Brasil, 2024Direção Milena Times

Avaliação Bom