SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Algumas pessoas demoram décadas para encontrar um propósito de vida, outras nunca acham. Não é o caso da pedagoga e consultora de gestão e carreiras Eliane Kreisler, 65, que desde a juventude já sabia o que a motivava: compartilhar conhecimento.
Aos 15 anos, ela arrumou o primeiro emprego como facilitadora no Mobral (Movimento Brasileiro de Alfabetização), que foi implementado no país entre 1967 e 1985 para reduzir o analfabetismo.
“A partir dessa experiência, e depois, como estagiária em uma escola para crianças pequenas, entendi que compartilhar um pouco do que sei é o que me move. E isso não apenas na minha vida profissional, mas também na pessoal”, diz.
Há três anos, Kreisler criou no YouTube o canal LongeTalks para falar sobre maturidade e longevidade, e, mais recentemente, idealizou e lançou o livro “Reflorescer na Maturidade”, com outros coautores, com o objetivo de ajudar as pessoas, sobretudo as mais velhas, a descobrir o que as motiva.
Mas, afinal, o que é propósito de vida? A psicóloga americana Carol Ryff, uma das autoridades no assunto, o define como “senso de direção e intencionalidade”. Segundo ela, isso é uma das seis dimensões que caracterizam o bem-estar psicológico –as demais são autoaceitação, relações positivas com os outros, autonomia, domínio do ambiental e crescimento pessoal.
Uma pesquisa sobre propósito de vida realizada por uma equipe da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) relacionou esse quesito a uma série de benefícios. Dentre eles: redução do risco para mortalidade e menor risco para Alzheimer, comprometimento cognitivo leve, distúrbios do sono e doenças coronarianas e cerebrovasculares, como enfarte do miocárdio e AVC (acidente vascular cerebral).
Também foi verificado menor risco de hospitalizações por condições sensíveis a cuidados ambulatoriais, melhores condições de enfrentamento de fatores estressores, mais resiliência e maior tendência a se envolver em comportamentos saudáveis, como atividade física e alimentação saudável, além de menor risco de se envolver em comportamentos de risco, incluindo tabagismo e consumo de álcool.
“Propósito de vida pode ser traduzido como objetivos e metas. E quem tem isso cuida mais da saúde, se previne mais e adere melhor aos tratamentos quando eles não necessários, justamente porque quer alcançar o seu objetivo e a sua meta”, explica a doutora em gerontologia Cristina Cristovão Ribeiro, que participou da pesquisa.
Segundo Ribeiro, que é presidente do Departamento de Gerontologia da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia Seccional do Paraná (SBGG-PR) e autora e organizadora do livro “Propósito de Vida da Pessoa Idosa”, isso se torna especialmente importante para os idosos porque essa é uma fase em que, muitas vezes, o indivíduo tem menos ocupações, mais tempo, está aposentado e tem um círculo social menor.
“Com um propósito, a pessoa mais velha se sente útil e motivada. Não sucumbe a, por exemplo, uma depressão”, observa. “Estamos cada vez vivendo mais. Hoje, chegar até 80, 90 anos não é mais um grande desafio. Mas é preciso aproveitar esses anos, saber o que fazer com eles, vivê-los com qualidade. E o propósito atua justamente nisso.”
Citação Com um propósito, a pessoa mais velha se sente útil e motivada. Não sucumbe a, por exemplo, uma depressão.
O cardiologista Álvaro Avezum, líder do Centro Internacional de Pesquisa do Hospital Alemão Oswaldo Cruz e vice-presidente do Departamento de Espiritualidade e Medicina Cardiovascular (DEMCA) da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC), estuda há alguns anos o impacto da espiritualidade na saúde cardiovascular.
Avezum esclarece que a espiritualidade, neste caso, é definida como um conjunto de valores mentais, morais e emocionais que norteiam o que pensamos, como agimos e como reagimos às circunstâncias de vida, e não tem nenhuma relação com religião ou religiosidade.
“É um termo guarda-chuva no qual propósito de vida está inserido, junto com gratidão, disposição ao perdão, satisfação com a vida, solidão, isolamento social, raiva e bem-estar espiritual. E não é apenas uma coisa intuitiva ou algo que não possa ser objetivamente demonstrado, tudo é passível de mensuração”, ressalta.
A partir disso, Avezum e sua equipe realizaram o estudo FEEL Trial (Spirituality-Based Intervention in Hypertension: EFfects on Blood PrEssure and EndotheliaL Function; em português: Intervenção Baseada na Espiritualidade na Hipertensão: Efeitos sobre a Pressão Arterial e a Função Endotelial), que demonstrou que essas práticas, aliadas ao tratamento, ajudam a reduzir a pressão arterial e a melhorar a saúde vascular em pessoas com hipertensão de leve a moderada.
O FEEL Trial acompanhou, por três meses, cem adultos com hipertensão –51 no grupo de intervenção e 49 no grupo controle. Os participantes do grupo de intervenção, além do tratamento convencional para controle da pressão arterial, receberam, via WhatsApp, mensagens diárias com vídeos e reflexões voltadas à espiritualidade e baseados nos pilares perdão, gratidão, otimismo e propósito de vida, que foram os que os pesquisadores encontraram mais dados na literatura científica. As outras 49 pessoas tiveram acesso apenas ao tratamento convencional, sem as mensagens.
Ao final do período no grupo de intervenção, observou-se redução média de 7,6 mmHg na pressão sistólica de consultório, representando uma queda de cerca de 6%, além de uma melhora de 7,5% na função endotelial, marcador importante da saúde vascular. Já no grupo controle, a pressão se manteve estável.
A explicação para isso, de acordo com o médico, é que a espiritualidade, quando implementada com base em evidências científicas, auxilia no enfrentamento positivo das situações adversas do cotidiano, o que ganha novo significado para os idosos, quando a vida profissional acaba ficando no passado e o círculo social tende a diminuir.
“Nesse enfrentamento positivo, a pessoa consegue se sentir melhor, menos ansiosa, menos estressada, tem um sono de melhor qualidade e adere melhor ao tratamento”, diz Avezum.
O psicanalista Marco D. de Paula, 65, sabe o quanto esse enfrentamento positivo faz a diferença. Ele, que lida com saúde mental há décadas, garante que, por ter um propósito, que é o de desenvolver e participar de ações que impactam a vida de outras pessoas, sente-se mais motivado, realizado e ativo.
O seu propósito ocorre por meio do voluntariado, prática que iniciou em 2009, primeiro no Hospital Emílio Ribas, em São Paulo, e há oito anos como parte do grupo de palhaços Big Riso, que visita crianças e adolescentes internados ou em tratamento no Hospital Anchieta, em São Bernardo do Campo, no ABC Paulista.
“Quando coloco o nariz vermelho e entro no quarto de uma criança, levo alegria, mas também recebo algo imenso de volta. É uma troca que me alimenta por dentro e me lembra todos os dias por que estou aqui”, afirma.
Outra história que mostra a importância de ter um propósito é a de Marlene Maria dos Santos Souza, 58. Ela se casou jovem e se mudou do interior da Bahia para São Paulo. Nesse processo, recebeu ajuda para se adaptar e, mais tarde, decidiu retribuir -o que acabou se tornando o seu senso de direção e intencionalidade.
Por meio da coleta e doação de todos os tipos de produtos que as pessoas precisam -desde fraldas e móveis até cadeiras de rodas. “Uma vez, um conhecido disse que tinha camas hospitalares para doar. Eu decidi pegá-las e distribuir para quem precisava. Foi assim que tudo começou”, conta. “Sempre tem alguém precisando de algo, e eu ajudo a conseguir.”
Este projeto (e propósito) é levado tão a sério que há dois anos ela o formalizou e criou a ONG Apoio Sobre Rodas. Hoje, Souza se dedica 100% à organização, que funciona em um espaço emprestado em Santo André.
“Não cobro nada. E se precisar, tiro do meu bolso. Acordo cedo, às vezes às 4h. Primeiro, cuido da minha casa e, depois, vou para a ONG. Tem cansaço? Tem dificuldade? Tem, mas faço esse trabalho com amor. É meu propósito de vida, e faz bem para o meu corpo, para a minha mente e para a minha alma”, afirma.
Como descobrir o meu propósito de vida?
Se você ainda não tem um propósito de vida, não se preocupe. Sempre é tempo para descobrir, e esse processo tem muito a ver com uma escuta ativa de si mesmo. Comece refletindo sobre o que gosta, com o que sente prazer e o que você faria mesmo sem ganhar nada em troca.
E saiba que seu propósito não precisa ser nada grandioso. “Ações simples e cotidianas, como cuidar de um jardim, ensinar algo que você sabe, cuidar de um animal ou decidir passar mais tempo com os netos também são metas e objetivos”, ressalta a doutora em gerontologia Cristina Cristovão Ribeiro.
A especialista sugere que você se faça algumas perguntas: O que me motiva? O que eu gostaria de realizar? Quais são meus interesses? Tenho algum desejo, vontade ou sonho que ainda não concretizei?
Junto a isso, preste atenção ao que incomoda você, pois, muitas vezes, o propósito está relacionado a algo que se quer mudar no mundo, e converse com pessoas que te inspiram e até mesmo com um profissional de saúde, como um psicólogo ou gerontólogo.
Experimente atividades diferentes -como trabalho voluntário, participar de ações no seu bairro e comunidade, explorar hobbies esquecidos-, tenha paciência e não se estresse (propósito não tem prazo, é algo que constrói e que, inclusive, se adapta e se aprofunda à medida que a vida avança).
“O importante é começar, é tentar, e encarar esse processo com leveza, sem desespero. A partir daí, as coisas irão acontecer, o propósito vai ser encontrado. E, mais para a frente, os benefícios dele na vida e na saúde serão notados e comprovados”, afirma Ribeiro.