PARIS, FRANÇA (FOLHAPRESS) – Todo dia, num momento exato desta primavera parisiense, os raios de sol que entram pela janela no alto da galeria iluminam o triângulo dourado de uma tela de Mira Schendel, e as linhas de luz e o traçado da artista parecem se multiplicar no espaço, realçando as formas de outros trabalhos ali.
É como se a escultura de Lygia Clark que repousa sobre a mesa metálica, ou as formas geométricas nas obras de Aluísio Carvão, Lygia Pape e Hélio Oiticica ao longo da parede ao lado, de repente se despertassem das sombras, das trevas a uma aura radiante, uma geometria de ângulos alicerçados nos trópicos deslocada para o outro lado do Atlântico.
O jogo de luzes pode ser involuntário, mas faz sentido no contexto, dentro do salão da casa La Roche, desenhada por Le Corbusier. O mestre do modernismo, na primeira vez que pisou no Brasil, no fim da década de 1930, mesma época da construção desta casa no endinheirado 16º arrondissement de Paris, disse que uma nova arquitetura nasceria da luz que ele então descobria naquela latitude.
É inegável, aliás, o seu próprio papel na propulsão desses lances puristas entre artistas e arquitetos do outro lado do mundo. O modernista ancorou as bases de seu chamado “esprit nouveau”, ou novo espírito construtivo, na mais simples e despojada geometria -ângulos retos, plantas livres, janelas que rasgam paredes e fachadas para desenhar amplíssimos horizontes, um mundo novo descortinado para quem vê de dentro e um palácio seco, atravessado pela luz, para quem vê de fora.
Do lado de fora, a mostra que agora ocupa a antiga casa de um banqueiro e colecionador de arte já se anuncia nas formas do banco Marquesa visto através da janela, desenho de Oscar Niemeyer com a filha Anna Maria feito na época de seu exílio em Paris, na ditadura militar. Seus traços vermelhos, numa rara edição da peça, dão um toque de sangue ao conjunto de tons suaves da construção.
Le Corbusier também não se limitou ao branco na criação da casa La Roche. As paredes e luminárias são tingidas de azul, amarelo, verde e ocre, numa paleta mais tímida que realça os planos, as curvas e os contornos do espaço.
Os artistas escalados para esta “Aberto4”, a primeira edição fora do Brasil de uma série de mostras organizadas por Filipe Assis que leva peças de grosso calibre a construções modernistas que entraram para a história, dialogam com essas cores em seus trabalhos -às vezes em sintonia, caso de Mira Schendel, às vezes na contramão, caso de Luiz Zerbini, na entrada.
Na pintura do paulistano mostrada ao lado de uma tela de Le Corbusier, os traços brutalistas do edifício Holiday, no Recife, são atravessados por rajadas de cor vibrantes, um Carnaval lisérgico que destrona a dureza daqueles ângulos retos e chacoalha as estruturas.
Le Corbusier, impressionado pelo Brasil, em especial as construções improvisadas nas favelas do Rio de Janeiro, também dissolveu a solidez de seus traços. Suas novas formas orgânicas e manchas vibrantes de cor são visíveis nas obras mostradas na casa.
Os desenhos de Roberto Burle Marx para os jardins do antigo Ministério da Educação e Saúde, que o franco-suíço idealizou junto com um time de brasileiros que escalou também Oscar Niemeyer para a construção desse marco moderno junto à orla carioca, espelham esse visual.
No fundo, é um encontro de vertentes de uma vanguarda que se desdobrou em novas ondas estéticas. Se a conversa começou lá atrás com Le Corbusier, Niemeyer e Burle Marx, a reação de concretistas e neoconcretistas mais tarde é mais do que evidente agora.
Hélio Oiticica, Lygia Clark e Lygia Pape, todos na exposição parisiense, mostram como os princípios modernos foram devorados pelo corpo, uma geometria colada à carne, construções que não renunciam ao toque, ao calor, ao suor.
Em seu “Metaesquema”, Oiticica ensaia os primeiros movimentos de formas geométricas que mais tarde saltariam da superfície da tela para o baile de Carnaval, a escultura movimentada pelo corpo que é o “Parangolé”, a arquitetura do acidente e do precário que é a sua monumental “Tropicália”.
Diante dessa mostra, impossível não lembrar a mítica instalação da década de 1960 que já dizia, na entrada de suas paredes tortas, que a “pureza é um mito”, à luz da evolução dos próprios traços de Le Corbusier, sem dúvida transformados por sua experiência tropical.
O “Bicho” de Lygia Clark também desafia toda e qualquer rigidez. É uma escultura de planos metálicos articulados que formam uma criatura mutante, capaz de mudar de formato, posição e atitude no contato com as mãos, a sua ideia de uma geometria tátil, refém do espaço ao redor como pode ser a cartilagem humana.
Nesse sentido, outras esculturas, de Anna Maria Maiolino, Erika Verzutti, Liuba Wolf, Maria Martins e Sergio Camargo, ampliam esse pensamento com a mesma vontade de sedução pelo toque e novas geometrias insuspeitadas.
Maiolino tem na mostra suas cobrinhas de argila alvíssima, Camargo tem um relevo feito com seus célebres toquinhos de madeira, Verzutti cria incisões e cortes de precisão milimétrica nas jacas que esculpe na pedra, um motivo recorrente em seu trabalho, Martins faz esvoaçar os contornos de um de seus monstros tropicais presos ao pedestal e Wolf mostra seus pássaros pretos de traços ao mesmo tempo leves e pesadíssimos como chumbo.
O que seria uma caixa-forte do modernismo mais duro de Le Corbusier acaba atravessada por ondas de cor e formas orgânicas também nas pinturas. Luisa Matsushita revisita as cores da casa numa tela e Marina Perez Simão constrói um horizonte movediço de tons intensos e brilhantes.
Tudo, no fim, parece encontrar o seu canto numa casa tão ousada quanto simples, de planos duros entrecortados por terraços e vista generosa para a cidade. É o modernismo atravessado pela cor e pela fúria que tanto rechaçou.
*O jornalista viajou a convite da ‘Aberto4’