RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – João Bosco pega o violão no estúdio em Botafogo para abrir o último ensaio antes da estreia da turnê de lançamento do álbum “Boca Cheia de Frutas”, que aconteceu no último dia 23, no Rio de Janeiro. Neste sábado (7), o show chega a São Paulo, no Teatro Bradesco.
Feita a contagem, tem início uma longa introdução que inclui sons pré-gravados de pássaros e ruídos da floresta. Sobre eles, os músicos constroem uma tapeçaria de terra e mato, preparando o terreno para o canto yanomami do músico na canção “Canto da Terra por um Fio” não sem antes fazerem uma citação a “Arquitetura de Morar”, peça instrumental de Tom Jobim gravada no disco “Urubu”.
“No disco, eu faço Canto da Terra por um Fio só eu e Jaques Morelenbaum. Mas no show, como somos um quinteto, fui buscar outra leitura”, diz João, sentado num sofá do estúdio depois do ensaio.
“Então lembrei do Arquitetura de Morar, do Tom Jobim, na qual eu poderia aproveitar umas inversões de acordes que faço no Canto da Terra por um Fio. Além disso, Tom foi um dos primeiros a olhar para essa questão ecológica no Brasil, de forma muito intuitiva. Arquitetura de Morar, para mim, remete à oca, aos povos originários.”
Tom Jobim é o primeiro, mas não é o único a ser lembrado no show. Ao longo do roteiro de mais de duas horas, João presta reverências em suas falas, em versos, em seu violão, nos arranjos, no repertório a Vinicius de Moraes, Aldir Blanc, Antonio Cicero, João do Pulo, Cartola, Dorival Caymmi, Chico Buarque, Silas de Oliveira, Milton Nascimento, Zeca Pagodinho, Martinho da Vila.
João desenha, dessa forma, o mapa de um país que contempla a origem indígena, a colonização europeia, a presença negra marcada pela tragédia da escravidão e pela glória de sua afirmação cultural, a abertura a demais povos ele próprio, mineiro, filho de libanês.
Um país em grande medida de “herdeiros sararás” nascidos de opressores e de oprimidos como o personagem de “Sinhá”, parceria sua com Chico Buarque presente no show. Um país que, ele define citando Darcy Ribeiro, “ainda vai acontecer, ainda há de ser”.
“Esse show fala desse país como Darcy falava”, reforça o compositor. “Ou como João Ubaldo, que dizia: A vontade pode. O Brasil tem que conseguir se afirmar como nação a partir desse povo maravilhoso que resulta dessa mistura, dessa miscigenação. Todos esses caras que cito no show são uma espécie de combustível, uma força, um vetor para que nós nos movimentemos na direção do que eles propõem. Para que essa nação seja, e um dia ela será, uma grande nação.”
O show costura esse mapa passando por canções de “Boca Cheia de Frutas” as selecionadas para o roteiro são de João com Francisco Bosco, incluindo a citada “Canto da Terra por Um Fio” e de diferentes momentos de sua carreira. Estão lá clássicos como “Caça à Raposa”, parceria sua com Aldir Blanc.
“É a floresta, é a caçada que se dá de diversas maneiras. Como cancelamento, como preconceito, como opressão”, afirma o compositor. “Quando Elis a gravou, ela falou para mim que se sentiu muito fortalecida, se sentiu diferente. E eu entendo por quê. É uma canção que fala em recomeçar sempre, como as canções e epidemias, como a covardia.”
“Quando Aldir ficava meio para baixo, eu falava para ele: Você tem que ouvir uma música chamada Caça à Raposa, que tem a letra de um cara aí que você precisa conhecer”, diz João, rindo, durante o ensaio. Parceiro maior da vida do músico, o letrista é evocado em clássicos presentes no show, como “Nação”, “João do Pulo”, “Coisa Feita”, “Corsário” e “Bijuterias” canção que o artista não tocava há décadas no palco.
Em meio a elas, João canta “E Aí?”, que fez sobre versos do amigo após sua morte e gravou em “Boca Cheia de Frutas”. “Fiz pensando nos versos e pensando nele. Por isso, faço um assovio como o da nossa Vida Noturna, que ele gostava muito. E por isso pedi para o Cristóvão Bastos citar ao piano Tive Sim, de Cartola, que Aldir adorava cantar e sempre pedia que eu tocasse para acompanhá-lo.”
“Vir-a-Ser”, outra da safra mais recente, traz na letra de Francisco uma reflexão sobre o mistério da canção, essa instituição grandiosa do Brasil que João afirma em seu show. E para além da canção, se mostra ali a opulência da música brasileira boca cheia de frutas que, no palco, se materializa em samba, jazz, maracatu, funk, bolero.
Tudo com a precisão rítmica, o lirismo, que se afirma mais pela sutileza do que pelo derramamento, e o vigor do violão de João, da guitarra de Ricardo Silveira, do baixo de Guto Wirtti, da bateria de Kiko Freitas e dos teclados de Cristóvão Bastos, que assina também os arranjos.
A música, alicerce sobre o qual João ergue seu país, tem para ele uma solidez palpável. Isso fica nítido quando conta que, certa vez, logo depois de ter tido alta médica após uma intervenção cirúrgica, ele entrou na cafeteria do hospital com sua mulher, Angela.
“Eu estava tenso devido a toda aquela situação de saúde”, lembra o compositor. “No som da lanchonete, estava tocando Isaura, de Herivelto Martins, cantada por João Gilberto e Miúcha. Ele faz uma segunda voz que inventa esquinas, curvas, vai meio de lado, enquanto ela faz a primeira. É um tipo de voz que não está escrita na partitura. Sai do coração dele, da alma do criador.”
“Naquele momento”, João prossegue, “eu fiquei bom da saúde”. “Saí dali querendo viver desbragadamente, já tomar uma cerveja, ir para o boteco. Esse samba, para mim, é uma referência de vida. A música é isso. É cura.”
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BOCA CHEIA DE FRUTAS
– Onde Nas plataformas digitais
– Autoria João Bosco
– Gravadora Som Livre
JOÃO BOSCO
– Quando Sáb. (7), às 21h
– Onde Teatro Bradesco – r. Palestra Itália, 500, São Paulo
– Preço R$ 120
– Classificação Livre
– Link: https://uhuu.com/evento/sp/sao-paulo/joao-bosco-14396