SÃO PAULO, SP E RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – O Censo 2022 revela que a onda evangélica da qual tanto se falou nos últimos anos não foi nenhuma marola, mas também não chegou a formar um tsunami.
Evangélicos são hoje 26,9% do Brasil, o segundo maior bloco religioso, atrás dos 56,7% que professam a fé católica. É o que apontam os recortes religiosos da população com 10 anos ou mais, divulgados nesta sexta (6) pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). A base foi o levantamento demográfico feito em 2022.
São, portanto, 100,2 milhões de católicos e 47,4 milhões de evangélicos nesse contingente etário. A ampla maioria de brasileiros é portanto cristã, embora esse grupo esteja no menor patamar já registrado.
Os chamados crentes subiram menos do que o esperado era comum ouvir ouvir projeções de que já seriam um terço da sociedade brasileira.
Evangélicos vêm num galope representativo: eram 6,5% em 1980, e no último recenseamento, de 2010, haviam disparado para 21,6% dos brasileiros com 10 anos ou mais.
A última leva estatística mostrou um crescimento mais acanhado do que o previsto. O aumento foi de 5,2 pontos percentuais entre 2010 e 2022. No intervalo anterior (2000-2010), evangélicos haviam dilatado em 6,5 pontos percentuais seu espaço no povo.
Hoje, são maioria em 58 municípios.
O demógrafo José Eustáquio Alves, pesquisador aposentado da Escola Nacional de Ciências Estatísticas do IBGE, lembra que os dados religiosos apresentados excluem crianças com menos de 10 anos. Isso pode ter refletido em parte numa subida estatística mais vagarosa, já que evangélicos são em média mais jovens do que católicos.
Para se ter uma ideia, na faixa de 10 a 14 anos, católicos são 52%, e evangélicos, 31,6%. Entre quem tem mais de 80 anos, as proporções são 72% e 19%, respectivamente.
É inegável que os católicos levaram um tombo de representatividade. Caíram de 65,1% da população para 56,7% em 12 anos, entre uma sondagem e outra do IBGE. Mas ainda são, com folga, o maior filão religioso no país. Em 20 municípios, é essa a fé optada por mais de 95% da população.
Verdade que o monopólio religioso que detiveram por séculos é coisa do passado. Até os anos 1980, eram 9 em cada 10 brasileiros. No primeiro Censo de todos, de 1872, pontuaram 99,7% claro que esse dado deve ser analisado com cautela, já que é de se supor que muitos escravizados e indígenas fossem enquadrados à revelia no catolicismo, a religião oficial de um imperial Brasil.
A depender da coordenada geográfica, há vários Brasis em termos religiosos. A região Norte tem a maior proporção de evangélicos, e Acre aparece na liderança entre os estados (44,4% da população local tem essa crença). Já o nordeste é a menos evangélica o Piauí (15,6%) com a menor taxa dessa religião.
Na moldura racial, indígenas têm a maior fatia proporcional de evangélicos: 32,2%, seguidos de pretos, com 30%, e pardos, 29,3%. Os brancos são sobretudo católicos (60,2%).
Testemunhos como o do autônomo Pedro Augusto Bilar, 21, multiplicam-se país afora. A mãe era católica não praticante, o pai ele nem sabe direito qual crença tinha, “já que ele não é tão presente assim na minha vida”.
Até os 14 anos, Pedro nem sequer acreditava em Deus. Até que, ainda adolescente, teve uma infecção bucal depois de um canal mal realizado no dente. “Fiquei com um inchaço muito grande na boca, a ponto de deformar um pouquinho a lateral do rosto. E tive que ser internado por causa disso.”
O jovem foi parar na UTI, após uma parada cardiorrespiratória como reação alérgica à anestesia geral que tomou. “Minha mãe já tinha avisado para todo mundo que eu tinha morrido, que era para o pessoal entrar em oração por mim, contatou crente, católico, botou geral aí para se compadecer pela minha causa.”
Durante a internação, uma enfermeira chegou até ele e perguntou: “Garotinho, você acredita em Deus?”. “Esse foi o início do meu processo de conversão”, conta o hoje fiel da Renascer em Cristo.
A estagiária Beatriz Wicher, 21, também tem berço católico, o dela mais pró-ativo. Chegou a fazer catequese e tem entre parentes alguns devotos mais fervorosos. Outros são ateus, espíritas, aquela salada ecumênica que já foi mais clássica nos lares brasileiros.
Ela diz que conheceu “Jesus sozinha no meu quarto”, lendo a Bíblia e escutando louvores, no que define como “realmente um encontro com Deus” que reconfigurou sua vida. “Por exemplo, eu tinha uma certa mania de contar mentirinhas para sair de situações chatas. Tipo: fazia alguma fofoquinha e depois dizia que não tinha sido eu, coisas assim. Passei a abominar mentiras.”
Sua percepção sobre a fé que passou a chamar de sua mudou radicalmente. “Eu era uma pessoa que achava que crente era antiquado, esquisito”, até ela mesma virar uma deles. Conta que sua vida prosperou desde então, no que credita à fé nesse Deus evangélico.
Conseguiu uma bolsa de 50% na faculdade, e um emprego que a ajudou a pagar os outros 50%. “Até um iPhone da Amazon de graça eu já ganhei. Mas eu diria que, de todas essas coisas grandiosas que Jesus fez por mim, a maior foi me amar de graça.”
Pedro e Bia são amostras dessa transição religiosa em marcha no Brasil.
“O crescimento evangélico segue consistente, embora mais tímido do que em décadas anteriores”, diz o antropólogo Rodrigo Toniol, da UFRJ. “Estatisticamente, é natural que o ritmo se modere. Ainda assim, o evangelicalismo se consolida como a força religiosa mais expansiva do país.”
Já o catolicismo, ainda que permaneça na cabeceira religiosa do país, mantém uma “trajetória de declínio inequívoca”, afirma o pesquisador de religião. “Em 80 anos, perdeu quase 40 pontos percentuais.”
Para a cientista política Ana Carolina Evangelista, diretora-executiva do Iser (Instituto de Estudos da Religião), “lembrar que o Brasil segue sendo católico, e em algumas regiões muito católico, é importante”.
Ainda é cedo para cravar um teto para o fenômeno evangélico. Mas pesquisas qualitativas vêm sugerindo, bem como “relatos e observação empírica”, que “começa a existir um desgaste de um tipo de cristianismo entre os próprios evangélicos”, afirma ela. “Fiéis especialmente mulheres e jovens que não se reconhecem mais em suas lideranças religiosas, seja pelo perfil, por pautas públicas defendidas ou pelo excesso de radicalização política.”
O avanço desse nicho cristão ainda é robusto, claro, “mas é uma dinâmica mais diversa de mudanças no perfil religioso do brasileiro do que apenas uma excessiva focalização do que acontece no campo evangélico”, ela diz.
“Seguem crescendo os sem religião entre os mais jovens, a identificação com religiões de matriz africana, historicamente subnotificadas, e decresce em mais de 10 pontos o número de cristãos no total se considerarmos os últimos 40 anos. Analisar o ritmo de crescimento maior ou menor dos evangélicos precisa considerar tudo isso.”
OUTRAS CRENÇAS E OS SEM RELIGIÃO
A numeralha recente reflete os chacoalhões tectônicos na religiosidade nacional, complementados por uma emergência silenciosa dos brasileiros que se declaram “sem religião” e pela expansão das crenças afro-brasileiras ainda microscópicas na estatística total, 1%, mas com o triplo do tamanho em relação a 2010. Digno de nota é serem mais fortes em regiões mais brancas: sul e sudeste.
A parcela de brasileiros que declarou não ter uma crença em particular foi de 7,9% para 9,3%. É uma turma heterogênea: aí se incluem ateus, agnósticos e gente que se diz espiritualizada, mas não adere a uma instituição religiosa específica, por exemplo.