RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – “Tudo pronto aqui. Já não é mais ‘nóis’”, diz José de Abreu, sentado no sofá sobre o qual passará boa parte de sua nova peça, pouco antes do primeiro ensaio geral. O “nóis”, no caso, é ele mesmo, que àquela altura já tinha cedido espaço ao atormentado homem de quase 300 quilos que ele interpreta em “A Baleia”, que estreia dia 6 no teatro Adolpho Bloch, no Rio.

E foi preciso a habilidade de um cetáceo para mergulhar na personagem —ele próprio diz que é sua maior imersão em um papel em 58 anos de teatro. A montagem adapta o texto do americano Samuel D. Hunter que em 2022 gerou o longa de mesmo nome de Darren Aronofsky, rendendo a Brendan Fraser o Oscar de melhor ator, na pele de um professor gay com obesidade mórbida que entra em processo de autodestruição pela comida. Com traumas envolvendo religião e a perda de um grande amor, o personagem quer, antes de morrer, se reaproximar da filha, de quem se afastou.

No palco, Abreu, que aos 79 anos interpreta um quarentão, usa enchimentos que, auxiliados por maquiagem e um eficiente trabalho locomotor, transmitem realismo ao papel.

“Confortável não é. Só de gelo, aqui tem quatro quilos”, diz o ator sobre sua vestimenta climatizada, pouco antes do ensaio. O gelo serve para equilibrar a temperatura corporal, que poderia subir muito após quase duas horas em cena. “Vestir esse corpo me joga no personagem. Mas sem dúvida foi um trabalho maior de mergulho no interior dele. Porque o exterior é só uma casca, né?”

“Não há como fazer esse personagem se não mergulhar profundamente na psiquê humana. Quando a peça começa, ele está mal. Na segunda cena, já está morrendo. Você tem que preparar a cabeça para ter essa premência da morte.”

Abreu sonhava em trazer a peça ao Brasil desde que conheceu o texto, há cerca de dez anos. A estreia do filme atrapalhou os planos, mas o projeto foi retomado mesmo assim, com Luís Artur Nunes na direção e um elenco que inclui Luísa Thiré e Alice Borges.

Para a estreia, o próprio Hunter veio ao Brasil. “É a primeira vez que uma produção internacional me convida para assistir, e olha que já montaram em uma dúzia de línguas diferentes”, diz o autor, destacando que a peça tem trechos cômicos que ficaram de fora do longa de 2022, mas preservados na versão brasileira.

A estreia marca a volta de Abreu ao palco após 12 anos –sua última peça tinha sido “Bonifácio Bilhões”, de 2013. O ator conta que se afastou do teatro porque passou muito tempo morando em lugares diferentes, sobretudo Paris. “Há 12 anos, resolvi sair do Brasil. Eu queria morar em um lugar onde não fosse conhecido.”

Já na época, Abreu tinha se tornado muito famoso no país não mais apenas pelo seu trabalho artístico, mas como figura controversa em redes sociais. Sua persona virtual sem papas na língua e empedernidamente de esquerda dividiu a internet entre adoradores e haters. Mas a volta a um espetáculo em contato direto com o público brasileiro após tantos anos não faz o ator temer a possibilidade de encarar pessoalmente quem o ofende nas redes.

“Meu hater não vai a teatro. Ali, é como um peixe fora d’água”, diz, com seu destemor pela polêmica tão característico.

“A Baleia” usou recursos da lei Rouanet, comumente demonizada por militantes direitistas. “É um direito de todo artista: é uma lei, está lá para ser usada. Já fui chamado de ladrão da Rouanet milhares de vezes, mas nunca escreveram sequer o nome certo”, ironiza, questionando se quem nem sabe a grafia do nome conhece de fato seu mecanismo. “A direita não gosta de arte, porque incomoda muito, né? A primeira coisa que se faz em uma ditadura é a censura.”

Mas o ator diz que não se importaria se detratores fossem assistir à peça. Mesmo porque, segundo Abreu, em geral, o público sabe diferenciar seu trabalho de suas convicções. “Muita gente diz: ‘Adoro como ator, mas como [pensador] político é uma merda!’. A maioria respeita minha profissão, mesmo se não respeita a minha posição política.”

A militância do ator começou quando era seminarista e conheceu um padre italiano que lhe esclareceu o quanto o cristianismo se confundia com ideais de esquerda. Na juventude, passou a frequentar reuniões estudantis, até que foi encarcerado pela ditadura militar ao participar do histórico congresso da UNE em Ibiúna, de 1968. “Fiquei três meses preso. Saí da cadeia três dias antes [da promulgação] do AI-5. Quem continuou preso não saiu mais”, diz.

“Nunca peguei em armas, mas dei apoio à luta armada. Eu tinha um emprego de vendedor de máquinas de escrever elétricas da IBM. Usava crachá, terninho. Então levei comigo malas com dinheiro para São Paulo, mesmo sem saber o que era”, relembra. Também transportava companheiros entre locais de reunião clandestinos e encontrava pessoas em locais marcados para, em código, transmitir mensagens.

Com o fim da ditadura, sua militância se deu sobretudo apoiando a esquerda em eleições. Em 2019, satirizou o direitista Juan Guaidó, que se autoproclamou presidente da Venezuela mesmo sem respaldo oficial das urnas, resolvendo fazer o mesmo no Brasil. “Todo mundo me chamava de presidente na rua. Aí um dia eu falei: ‘Chega, eu vou renunciar no dia 1º de abril”, diz, sobre sua traquinagem.

A política também está embutida em seu novo espetáculo, ainda que o foco pareça ser apenas o íntimo do personagem. O texto condena tanto a homo quanto a gordofobia. Abreu acha que o fato de não ser obeso não pode ser empecilho para ele interpretar um no palco. “É muito diferente do caso dos negros. Em ‘Segundo Sol’, a gente do elenco teve uma reunião para realçar a importância de ter negros na novela, já que era na Bahia. Estávamos incomodados”, relembra, sobre a trama de 2018 cheia de atores brancos passada no Estado mais negro do país.

Abreu se diz otimista quanto a um futuro mais inclusivo e menos polarizado, apesar do recrudescimento do reacionarismo. Diz se chocar quando colegas de trabalho se mostram conservadores nos costumes.

“Para mim é muito estranha aquela entrevista da Cássia Kis [concedida a Leda Nagle, na web, em 2024, em que diz frases homofóbicas], por exemplo. Nosso ambiente tem muito homossexual, trans e lésbica, e isso foi sempre muito natural para a gente. Nunca foi um problema”, diz. Ele afirma que não conversa mais com a atriz, a quem acionou judicialmente por homofobia. “Ela está sendo processada por duas entidades, e eu sou uma das pessoas físicas que está processando.”

Defensor contumaz dos governos do PT, Abreu não é tão efusivo quanto a gestão da atual ministra da Cultura, Margareth Menezes. “Ela está perdendo a chance de liderar todo esse movimento pela taxação das empresas de serviços on demand. E também a questão da inteligência artificial, que vai prejudicar os artistas, que podem ser substituídos brevemente por avatares. Nunca o Ministério da Cultura teve tanto dinheiro, e acho que ela está perdendo esse momento histórico.”

Já sobre Lula, o ator diz que ele sofre, em seu terceiro mandato, com um Congresso de oposição. “E de muito baixo nível. Fica difícil governar assim. Mas considero um bom governo. Os indicadores sociais e econômicos são excelentes. E, comparado a Temer e Bozo [Bolsonaro], não tem como não elogiar. Mas aí também é covardia”, diz aos risos.

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A BALEIA

– Quando Qui. a sáb., às 20h; dom, às 18h. Até 20 de julho

– Onde Teatro Adolpho Bloch – r. do Russel , 804, Rio de Janeiro

– Preço De R$ 25,00 a R$ 160,00

– Classificação 14 anos

– Elenco Luisa Thiré, Gabriela Freire, Eduardo Speroni e José de Abreu

– Direção Luís Artur Nunes

– Link: https://www.ingresso.com/espetaculos/a-baleia