ITAPARICA, BA (FOLHAPRESS) – Nas ruas enlameadas da comunidade do Barro Branco, em Itaparica, tratores derrubam árvores, abrem vias e cavam o solo dos morros para aterrar mangues. Lotes de terra são cercados, fechando caminhos e isolando áreas verdes consideradas sagrados nos cultos aos orixás e eguns.

A megaponte de 12,4 quilômetros entre Salvador e a ilha de Itaparica, na Bahia, ainda não começou a ser construída, mas já deixa rastros na região insular que abriga as cidades de Vera Cruz e Itaparica.

O projeto enfrenta pressões e controvérsias após uma revisão do orçamento que ampliou os aportes recursos públicos, inquéritos que apuram os impactos da obra e estudos que apontam os impactos sobre comunidades tradicionais.

Um novo acordo para execução da obra foi assinado na última quarta-feira (4) entre o governo Jerônimo Rodrigues (PT) e o consórcio de empresas chinesas, que terá 12 meses para iniciar a obra. O cronograma de execução é de seis anos.

Com estimativa de fluxo de 28 mil veículos por dia e duas praças de pedágio, a ponte promete diminuir distâncias entre Salvador e o interior, criando uma nova rota de saída da capital. Levando em conta apenas o trecho acima da água, será a maior ponte da América Latina.

A construção da ponte foi concebida em 2009 na gestão Jaques Wagner (PT), mas foi licitada somente dez anos depois. O contrato com o as empresas chinesas foi assinado em 2020, no governo Rui Costa (PT), mas não foram iniciadas as obras civis.

Mediado pelo Tribunal de Contas do Estado, um novo acordo foi firmado entre o consórcio e o governo baiano, reajustando o orçamento da obra de R$ 6,3 bilhões para R$ 10,4 bilhões. Deste total, R$ 5 bilhões virão do governo em um modelo de parceria público-privada.

O governo ainda pagará contraprestações anuais de R$ 371 milhões nos primeiros 10 anos de operação da ponte e R$ 170 milhões nos 19 anos seguintes. Assim, o gasto público com o projeto será de ao menos R$ 12 bilhões, quatro vezes mais que o previsto inicialmente.

O consórcio formado pela CCCC (China Communications Construction) e CCECC (China Civil Engineering Construction Corporation) pediu a revisão do contrato alegando encarecimento dos insumos após a pandemia da Covid-19.

Em reunião com o governador há duas semanas, as empresas cobraram agilidade na concessão de vistos, crédito e margem para uma nova revisão do orçamento – foram encontradas rochas maleáveis que podem encarecer o projeto. O consórcio disse que o novo contrato será assinado após o aval do governo da China.

Mesmo sem o início das obras, o projeto preocupa ambientalistas e moradores das comunidades de Itaparica. O sistema viário deve impactar ao menos 114 áreas sensíveis para comunidades tradicionais, incluindo locais de pesca e mariscagem, trilhas para manguezais e fontes de água doce.

O panorama consta no mapa êmico, estudo que avalia os impactos da obra sobre o modo de vida das comunidades e foi condicionante para renovação da licença prévia pela concessionária.

No povoado Barro Branco, a pressão imobiliária avança sobre áreas verdes que historicamente são utilizadas por 16 terreiros. Nas religiões de matriz africana, as matas são consideradas sagradas e usadas para colocar oferendas, realizar preceitos e coletar folhas.

Poucos quilômetros adiante, na comunidade do Mocambo, fontes de água foram aterradas e construções avançam sobre um manguezal rico em caranguejos, lambretas e aratus. No Parque das Mangueiras, moradores temem as consequências do canteiro de obras erguido na região.

O Ilê Tuntun Olukotun, tombado como Patrimônio Cultural Material da Bahia, foi alvo de ataques em 2021. Fundado em 1850, o terreiro é conhecido pelo culto a Baba Egum. A região de Itaparica é a única onde esse tipo de culto sobrevive na diáspora negra.

“Estamos falando de um lugar de peregrinação de gente do candomblé do Brasil inteiro. Você imagina uma estrada passando em cima do Vaticano? Porque vão passar aqui?”, questiona o antropólogo Olavo Souza.

Membros do Movimento pela Defesa do Território Sagrado da Ilha de Itaparica dizem que o projeto da ponte impulsionou a pressão imobiliária e afirmam que não houve consulta prévia à comunidade.

O sistema viário também prevê a construção de uma nova via expressa que vai cruzar o território da ilha. Ao menos 124 terreiros estão no entorno das vias, e dois serão diretamente impactados pelas obras.

O projeto de ponte é objeto de três inquéritos – dois do Ministério Público Federal e um do Ministério Público do Estado da Bahia- que avaliam impactos ao meio ambiente e às comunidades tradicionais.

Há preocupações com o impacto ambiental na baía de Todos-os-Santos, a ameaça a biomas sensíveis, além das repercussões na ilha, que já possui deficiências no acesso à água, saneamento e manejo de resíduos sólidos.

“O impacto urbanístico é muito forte. Quando você abre uma estrada, há um efeito espinha, com ocupações do entorno”, avalia a promotora Cristina Seixas, titular da Promotoria de Meio Ambiente.

A concessionária Ponte Salvador-Itaparica diz que o projeto será executado com respeito aos direitos coletivos e ao desenvolvimento sustentável.

Ao todo, estão previstos 40 programas socioambientais orçados em R$ 250 milhões, incluindo ações de incentivo ao empreendedorismo, capacitação de mão de obra e preservação da cultura. As medidas de monitoramento, mitigação e compensação serão feitas de forma contínua, informou.

O governo da Bahia informou que pretende ampliar as precauções para mitigação e compensação na fase de licença de instalação do projeto, com consulta às comunidades. Caberá à concessionária garantir, os acessos aos pontos de mariscagem, de pesca e as áreas de deslocamento entre as comunidades.

Sobre os inquéritos do Ministério Público, o governo afirma que não houve violações ao direito de consulta às comunidades e que segue integralmente o que estabelece a legislação brasileira e a convenção da Organização Internacional do Trabalho, da qual o Brasil é signatário.

Em relação ao aumento de aportes públicos no projeto, o governo disse que o projeto foi severamente afetado pelos efeitos da pandemia, com o aumento do preço dos insumos.