SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Os oito meses de ocupação militar de uma área na região de Kursk, no sul russo, foram marcados por destruição indiscriminada, assassinato de civis e outros crimes de guerra. A acusação, a qual Moscou se acostumou desde que invadiu a Ucrânia em 2022, desta vez está sendo dirigida a Kiev.

Em uma teleconferência nesta quinta (5), o Ministério das Relações Exteriores da Rússia apresentou sua versão do que ocorreu durante a invasão promovida por Volodimir Zelenski em agosto do ano passado, a primeira incursão militar estrangeira no país de Vladimir Putin desde a Segunda Guerra Mundial.

As forças de Kiev recuaram em março, sendo completamente expulsas em 26 de abril deste ano. A extensão máxima que chegaram a ocupar equivaleu ao município do Rio.

Na apresentação acompanhada pela Folha de S.Paulo, os russos compilaram levantamentos feitos pelo Ministério do Interior, relatos anedóticos de três sobreviventes, depoimentos de jornalistas locais, evidências em fotos e vídeos, além de uma forte carga ideológica e propagandística.

Nada muito diferente do que ocorre em apresentações semelhantes feitas na Ucrânia acerca do comportamento de tropas russas. A novidade é o contexto.

A Rússia é objeto de uma investigação sobre crimes de guerra na Corte Internacional de Justiça, e pela remoção de crianças de áreas ocupadas Putin ganhou um pedido de prisão, ao lado de outras autoridades.

Há outras investigações, algumas feitas por monitores independentes e outras, pelos ucranianos. Como seria previsível, Moscou qualifica as acusações como persecutórias e fabricadas.

Agora, terá a chance de receber a mesma pecha com sua apuração —por ora, Kiev apenas tem negado ter cometido crimes, ainda que Zelenski tenha dito que os russos estavam provando do próprio veneno.

No meio de tudo, estão os civis. Um deles, Nikolai Ivanovitch, relatou como a região de Sudja, a principal cidade ocupada pelos ucranianos, foi saqueada e destruída de forma sistemática pelos invasores. “Eles roubaram até bicicletas”, disse. As imagens, que já foram submetidas a georreferenciamento por monitores independentes, mostram ruínas onipresentes.

“Quando voltamos, não achamos nossa casa”, disse Elena Ivanova, que integrava o conselho municipal local. “Não sei por que fizeram isso, não éramos ameaça a ninguém. Mataram famílias inteiras por diversão”, afirmou, emulando tantos relatos semelhantes do outro lado da fronteira, como no notório caso de Butcha.

Moscou conta cerca de 6.800 civis mortos de seu lado na operação ucraniana. São números impossíveis de comprovar, assim como os de Kiev. Ambos os rivais tratam ou com nebulosidade ou com exagero seus dados da guerra —a ONU conta mais de 13 mil civis na Ucrânia, mas admite a subnotificação; as vítimas militares estão na casa das centenas de milhares dos dois lados.

Há mais de 500 casos criminais abertos contra prisioneiros tomados na ação em Kursk, que vão de mortes a estupro. A invasão deixou dezenas de milhares de deslocados internos, que agora voltam de forma titubeante dada a conflagração em torno da região.

“Os ataques continuam”, afirmou o embaixador russo responsável por relatar os casos, Rodion Mirochnik, citando a explosão de uma ponte ferroviária no fim de semana passado que causou um descarrilamento de trem, matando sete civis.

Conhecido por sua atuação como agitador político no Donbass, o leste ucraniano, Mirochnik introduziu um elemento político curioso à sua apresentação. Em linha com a aproximação da Casa Branca sob Donald Trump com Putin, que é vista em Kiev como um risco de capitulação, ele afirmou que a invasão foi estimulada por Kamala Harris.

A candidata democrata derrotada por Trump surge em fotos ao lado de Zelenski, e uma visita do presidente ucraniano a fábricas militares nos EUA foi usada por Mirochnik como uma prova da associação.

A mudança de tom em relação aos EUA não se estende a outros aliados ocidentais. Minas antipessoais alemães foram apresentadas, sugerindo um elo histórico com a invasão nazista da União Soviética em 1941.

Mirochnik disse que, ao fim, Kiev “só conseguiu agir porrque a operação foi organizada com apoio ocidental”, evitando citar EUA. Na prática, o ganho para Zelenski esvaziou-se com a derrota: sua ideia de ter algo para barganhar foi trocada por uma contraofensiva na mesma região, agora do lado ucraniano, em Sumi.