SÃO CARLOS, SP E SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Niède Guidon, que morreu neste quarta-feira (4) aos 92 anos, pôs o Brasil no mapa da ocupação das Américas. A avaliação é da jornalista Adriana Abujamra, biógrafa da arqueóloga. O papel de Guidon também é elogiado por professores, que veem o trabalho dela como pioneiro e um exemplo a ser seguido na ciência.
Abujamra, autora do livro “Niède Guidon: Uma Arqueóloga no Sertão”, diz que a relevância da arqueóloga teve um alcance muito além da sua área de atuação profissional.
“Ela coloca o Brasil no mapa da ocupação das Américas, por mais controverso que isso tenha sido na época. Coloca o Piauí no mapa do Brasil, mostrando que um dos estados mais pobres do país tem essa riqueza imensa. E faz o mesmo com a caatinga, um bioma que todo mundo considera como simples terra arrasada, mas tem uma resiliência incrível, importando-se com preservação numa época em que não se falava tanto disso”, resume.
“Nesta semana mesmo mostraram que onças tinham aparecido no parque. Talvez nada disso, nem as pinturas, tivesse sobrevivido se não fosse pelo trabalho de Sísifo da Niède, que ano a ano dizia que estava prestes a abandonar tudo e voltar para a França, mas acabou virando uma caatingueira raiz.”
“Tentando escapar de todos os clichês, acredito que a palavra pioneirismo seja a mais importante”, destaca Maria Mercedes Okumura, que coordena o Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos da USP.
“Pioneirismo na arqueologia brasileira, ao escolher o Nordeste como região de estudo, ao lutar pela preservação do patrimônio arqueológico e valorizar as comunidades locais e seus conhecimentos tradicionais, em uma época na qual esse tipo de engajamento estava longe de ser considerado como prática importante no fazer científico.”
“O encontro com Niède Guidon foi capital na minha vida”, afirma Fabio Parenti, hoje professor do Centro de Estudos e Pesquisas Antropológicas da UFPR (Universidade Federal do Paraná). “Quando me recebeu em seu escritório em Paris, em 1983, fiquei cativado pela interessante mistura de cultura científica e humanismo.”
Parenti trabalhou com a pesquisadora por mais de duas décadas, “escavando, explorando, divertindo-nos e tentando entender o mundo”, descreve ele. “Mas o legado principal [da carreira dela] é a ideia de que muitas coisas difíceis podem estar ao nosso alcance e, sobretudo, somente valem a pena se puderem dar impulso ao nosso próximo.”
O bioantropólogo Walter Neves, professor sênior do Instituto de Estudos Avançados da USP, recorda que ele e Guidon tiveram divergências científicas sérias durante a maior parte da carreira de ambos. “Mas podemos dizer que ela fez mais pela arqueologia brasileira do que praticamente todos os demais arqueólogos juntos, especialmente como grande empreendedora e criadora de uma estrutura de pesquisa”, afirma. “A grande preocupação é quem vai herdar esse legado.”
A professora de arqueologia Maria Conceição Lage, da Universidade Federal do Piauí (UFPI), define Guidon como símbolo da arqueologia brasileira. Elas trabalhavam juntas desde 1983 na Fundação Museu do Homem Americano e atuaram na UFPI de 1983 a 1986.
“Sempre encarou tudo de frente”, diz a docente. “A vida toda ela transmitia para mim e para as pessoas que trabalhavam com ela a vontade de trabalhar, de ser disciplinado, cuidadoso nas pesquisas”, afirma Lage. “E, em vez de levar [seus achados] para museus já consolidados no mundo, ela criou museus no local. Então o mundo que veio visitar esse material aqui, no Piauí.”
Rafael Milheira, coordenador do curso de arqueologia da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), vê Guidon como uma grande inspiração. “Sempre digo em aula que, se eu fizer 10% do que ela fez na vida dela, vou me aposentar feliz”, afirma o professor, que lembra que Guidon foi responsável por colocar uma peça a mais na discussão sobre a ocupação da América.
Para a professora Maria Jacqueline Rodet, do curso de arqueologia e antropologia da Universidade Federal de Minas Gerais, Guidon ligou a arqueologia brasileira à arqueologia mundial e é uma referência para todos que trabalham na área no país, independentemente se concordam com suas ideias ou não. “É uma perda muito grande.”