SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – No exterior, filmes brasileiros são premiados e celebrados. Por aqui, o trabalhador do audiovisual já viu dias melhores.
Roteiristas, produtores, assistentes estão procurando trabalho e não acham. A reportagem ouviu relatos de que há muita mão de obra ociosa atualmente, sobretudo no mercado de streaming.
Enquanto isso, séries nacionais desaparecem dos catálogos, e o Ministério Público do Trabalho investiga produtoras e plataformas -Netflix, Prime Video, Disney+, Globoplay, Max, Paramount+-, analisando contratos que chama de draconianos.
De acordo com dados compilados a pedido da reportagem, houve uma queda de 30% nas produções de streaming e nos postos de trabalho registrados junto ao Sindicato dos Trabalhadores na Indústria Cinematográfica e do Audiovisual, o Sindcine, no ano passado, em São Paulo.
Em 2023 foram registrados no Sindcine 85 projetos, que empregaram pelo menos 4.254 trabalhadores. No ano seguinte, o número caiu para 59, com 2.947 técnicos ocupados. Segundo profissionais do estado ouvidos pela reportagem, a situação do mercado de trabalho começou a piorar no final de 2023.
Bruno Líbano, assistente de câmera, já trabalhou para obras que saíram no Globoplay, Max, Netflix. Paramount+, entre outros. No momento, porém, ele não está fazendo nenhum projeto de streaming. “O mercado está morno. Desde 2023 deu uma esfriada”, afirma.
Ele diz que, no ano passado, ganhou menos do que no ano anterior. Como alternativa, foi fazer TV e conteúdo para internet. Atualmente, presta serviço para um programa do SBT, “Eita Lucas”, apresentado pelo marido do influenciador Carlinhos Maia.
O ator Mariano Mattos Martins, que fez Silvio Santos na série “O Rei da TV”, da Star+, conta que, entre 2018 e 2022, metade de seus trabalhos de ator eram no streaming. Hoje, os trabalhos para o sob demanda não chegam a 5% de sua atuação profissional. “Eu nunca parei de fazer teatro, e essa desidratação do streaming me fez focar mais ainda no teatro”, diz.
O artista conta que costumava ser chamado para uma média de duas a três seleções de casting para streaming por mês, mas agora é chamado para uma a cada quatro meses.
Mayara Wui, assistente de arte, conta que vinham fazendo duas séries grandes por ano, desde 2021, pelo menos. Eram projetos robustos, durando entre quatro e sete meses, o que a mantinha ocupada e remunerada o ano todo. “Do meio do ano para cá, voltei a fazer publicidade por falta de trabalho”, afirma.
“A maior parte das séries que fiz pararam na primeira temporada -no máximo, na segunda. E todas elas tinham, de alguma forma, um gancho para temporadas seguintes”, diz Wui. “Acho que o retorno de público, de audiência, não foi satisfatório.”
Uma pesquisa de abril da Universidade Federal de Minas Gerais analisou lançamentos de séries brasileiras nos streamings.
Foram analisadas somente obras de ficção seriada -formatos como realities filmes não entraram no escopo- das plataformas Netflix, Globoplay, Prime Video, Max, Disney+, Star+, Paramount+ e Playplus entre 2016 e 2023. Ao todo, foram listados 94. Destes, 12 não estão mais disponíveis nas plataformas de origem, como “Anderson ‘Spider’ Silva”, da Paramount+, de 2023. Globoplay, Netflix e Playplus não retiraram séries brasileiras originais de seus catálogos. No Prime Video, a série retirada não sumiu totalmente, mas foi hospedada em outra plataforma, para aluguel.
Para a pesquisadora Mariana Ferreira, uma das autoras do estudo, 2025 deve seguir a tendência de queda. “Não chegamos ainda a olhar lançamentos de novas temporadas em 2024, mas com relação a novas séries foram só 16 -o mesmo número de lançamentos de quando só havia Globoplay, Netflix e Playplus produzindo séries originais no país”. Segundo ela, foram 31 lançamentos de novas séries 2023 e 23 em 2022.
A Netflix recentemente anunciou dez séries originais feitas no Brasil, entre eles, u ma sobre o acidente com Césio-137 em Goiânia, em 1987. A Max, que em breve voltará a adotar o nome HBO, anunciou mais um folhetim, “Dona Beija”, além da série sobre a socialite Ângela Diniz, a segunda temporada de “Cidade de Deus”, entre outras produções.
Em setembro do ano passado, o Ministério Público do Trabalho no Rio de Janeiro abriu inquérito para apurar cláusulas impostas a roteiristas por produtoras brasileiras com seis plataformas de streaming.
O inquérito está em curso, mas o procurador Cassio Casagrande adianta que “parece haver desequilíbrio contratual”, prejudicando os roteiristas. Em 2022, aqueles em regime CLT eram 10% dos associados da Abra, a Associação Brasileira de Autores Roteiristas. O número caiu para 5,5% em 2024.
Quem executa as produções e escala os roteiristas são produtoras brasileiras, contratadas pelas plataformas de VoD. Entre as queixas dos profissionais, há o fato de serem submetidos a diretrizes jurídicas estrangeiras.
Muitas áreas vêm sofrendo um processo de pejotização, mas no caso do streaming, diz Casagrande, pesa o fato de ser um mercado muito concentrado. Segundo o estudo da UFMG, 45% das séries foram feitas por apenas oito produtoras.
“O roteirista é muito fraco para negociar as condições do contrato”, diz Casagrande, que avalia que não há um sindicato forte para a categoria.
Em paralelo a esse quadro de crise, avança em Brasília o PL do streaming, que busca regulamentar o vídeo sob demanda no Brasil, obrigando as plataformas a pagar uma contribuição a ser revertida em produções brasileiras.
Grandes serviços como Netflix e Prime Video têm feito acenos a órgãos públicos que incluem campanhas de promoção do turismo e reformas em equipamentos públicos.
Em nota, a Strima -associação que reúne as plataformas Disney+, Globoplay, Max, Netflix e Prime Video-, “o volume de produções reflete decisões estratégicas individuais e não devem ser atribuídas à presença ou ausência de regulamentação”.
Há também quem enxergue na crise percebida pelos profissionais paulistas uma consequência dos esforços de descentralização do Fundo Setorial do Audivosual por parte da Ancine, que aprovou cotas de investimentos para regiões fora do eixo Rio-São Paulo.
Pessoas ligadas a grandes plataformas, ouvidas pela reportagem sob a condição de anonimato, discordam de que haja crise. Segundo eles, houve um “boom” de produções represadas no pós-pandemia. Passada a onda, ficou a percepção de que o mercado esfriou, dizem.
Para outros, porém, trata-se de algo mais complexo. As grandes plataformas, outrora adeptas de investimentos robustos, teriam recalculado a rota -sobretudo após 2022, quando a Netflix viu um decréscimo de assinantes.
Nos relatórios globais de resultados financeiros mais recentes do serviço, há menções diretas ao Brasil e ao prospecto da regulamentação do streaming por aqui.
O texto afirma que, embora a Netflix acredite ter argumentos para se defender de “questões com autoridades fiscais brasileiras”, o desfecho da disputa “pode ser significativamente diferente do que se espera”.
O gargalo nas contas da empresa é estimado pelo documento em US$ 400 milhões, “valor que deve aumentar com o tempo”, segundo o documento relativo a 2024. No relatório referente ao ano anterior, a empresa havia estimado que o custo seria de US$ 300 milhões.
“Que o mercado está reduzido, é fato”, diz Sonia Santana, presidente do Sindcine. “Eles estão segurando [os investimentos] para forçar [o setor]”, diz, alimentando a tese da pressão política. “Quem nadou de braçada por 12, 14 anos, não quer a regulamentação”, diz a presidente, sobre a década e meia de inexistência de exigência de pagamento, por parte dos streamings, da Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional, a Condecine.
A produtora Andrea Barata Ribeiro discorda. “Realmente existem menos projetos no mercado, mas não vejo uma ligação entre as coisas”, diz ela, que é sócia-fundadora da O2 Filmes. “Existe, sim, uma pressão enorme dos streamings sobre o PL. Só não acredito que haja uma retaliação ao mercado.”
“Acho que houve uma expectativa de consumo maior no pós-pandemia que não aconteceu. Não acho que esse enxugamento seja uma coisa exclusiva do Brasil”, diz Barata Ribeiro.
André Mielnik, presidente da Abra, concorda que a crise no Brasil faz parte de um quadro global, que se tornou cada vez menos favorável para os trabalhadores da área. “O streaming vem gerando cada vez menos competitividade [entre as plataformas]. No começo, o streaming pagava os melhores orçamentos, os melhores salários. Mas esse modelo não é sustentável”, afirma Mielnik.