SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Moscas-das-frutas evitam o consumo de cocaína, mas cientistas deram um empurrãozinho nesse uso para tentar ganhar um novo possível aliado em estudos sobre dependência química que podem, eventualmente, ajudar pessoas.

Um estudo publicado nesta segunda-feira (2), na revista científica The Journal of Neuroscience buscou desbloquear uma nova ferramenta para estudos sobre mecanismos genéticos envolvendo dependência de cocaína.

Antes de continuar, uma questão pode estar zumbindo ao redor da sua cabeça: por que moscas?

As drosófilas, segundo os pesquisadores, são um excelente modelo experimental para estudar comportamento. Os cientistas apontam que cerca de 75% dos genes humanos relacionados a doenças possuem paralelos funcionais nas moscas-das-frutas. Esses insetos têm se mostrado modelos efetivos para estudar especialmente alcoolismo.

“Muitos genes identificados com base em seu envolvimento nas respostas ao álcool em drosófilas ajudaram a descobrir genes correspondentes envolvidos no transtorno do uso de álcool em humanos”, escreveram os cientistas.

De toda forma, um problema permanecia para o uso de drosófilas no estudo de dependência de cocaína: esses insetos não são exatamente fãs da substância. E, para um estudo sobre uso e preferência de consumo, é relevante que o animal procure a substância por conta própria.

Os pesquisadores afirmam que as moscas-das-frutas, ao ter contato com soluções com cocaína a partir de suas patinhas, têm ativados neurônios gustativos (a partir de genes chamados de Gr66a) relacionados ao sabor amargo. Isso criaria uma aversão à ingestão da substância, o que leva, por fim, ao não desenvolvimento de uma preferência por seu consumo.

Para contornar essa questão, os cientistas observaram moscas com Gr66a mutante ou nos quais o gene foi silenciado —ou seja, respectivamente, casos em que essa parte do DNA estava alterada ou “desligada”, mudando a percepção de amargor. Nesses casos, o estudo aponta ter havido uma aversão muito menor à droga.

“Embora a cocaína também tenha um sabor amargo para os humanos, não se sabe se as alterações nos receptores gustativos modificam o risco de desenvolver um transtorno por uso de cocaína. A percepção do sabor amargo, no entanto, modula o consumo de álcool em humanos, e polimorfismos nos genes [variações no DNA] que codificam proteínas receptoras do sabor amargo têm sido associados ao consumo de álcool, comportamento de consumo excessivo e risco de desenvolver transtorno por uso de álcool”, escrevem os pesquisadores.

Mesmo com menor aversão, os insetos continuaram, em geral, evitando a substância. A forma que os pesquisadores encontraram foi, então, reduzir as concentrações da droga nas soluções oferecidas às moscas-das-frutas.

Para esse experimento, os cientistas usaram moscas com idades de 3 a 6 dias e as submeteram a um período de privação de alimento. Depois, era permitido que os insetos se alimentassem por 30 minutos. Eram oferecidas duas placas, uma com solução de sacarose e outra com uma solução com cocaína adicionada.

Segundo os cientistas, dentro de 12 a 18 horas, as moscas —lembrando que estamos falando agora de insetos com os genes Gr66a mutantes ou silenciados— desenvolveram preferência de consumo por cocaína. E não é que elas tenham “desenvolvido um gosto” pela substância. Elas só aprenderam a visitar com maior frequência a placa com a droga.

“Como a cocaína inibe o transportador de dopamina tanto em moscas quanto em mamíferos, uma possível explicação para os comportamentos que observamos é que a cocaína atua nos neurônios PAM dopaminérgicos da drosófila, que são conhecidos por serem necessários para o aprendizado de reforço comportamental mediado por açúcar”, apontam os autores no artigo.

Ao falar em dopamina, usualmente já fazemos associação com prazer, recompensa e euforia. Ok, mas e os humanos com isso?

“Como a cocaína geralmente não é consumida por via oral em humanos, onde a maioria dos receptores de sabor amargo se encontra, acreditamos que o paralelo com a percepção humana de amargor provavelmente não seja tão relevante”, afirma Adrian Rothenfluh, um dos autores do estudo, reafirmando, porém, a associação mencionada mais acima sobre consumo de álcool em humanos.

O ponto central com potencial para novos horizontes, porém, é outro.

“O avanço está em nossa capacidade de examinar os genes que foram associados ao transtorno do uso de cocaína em humanos para verificar seu efeito causal na autoadministração de cocaína em moscas”, afirma Rothenfluh. “Quanto mais entendermos sobre esses genes e os mecanismos pelos quais eles afetam o consumo de cocaína, melhor seremos capazes de projetar racionalmente terapêuticas que possam neutralizar esses efeitos da cocaína.”