SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A certa altura, o romance “Orbital” começa a divagar sobre uma das fotografias mais famosas da história, feita pelo astronauta Michael Collins em plena órbita da Lua, em 1969. Na pioneira missão Apollo 11, o americano clicou o módulo espacial que deixou seus companheiros na superfície lunar, com a Terra registrada ao fundo.
A interpretação mais comum é que toda a humanidade estava contida na moldura daquela foto: todas as pessoas que habitavam a Terra e, ali dentro da nave, os demais tripulantes da missão. A única pessoa viva que estava fora de quadro era o próprio Collins.
Mas o livro protesta. “Na verdade, não há ninguém na foto, ninguém que possa ser visto”, aponta o astronauta Anton, um de seus protagonistas. Neil Armstrong e Buzz Aldrin estavam ocultos dentro do módulo lunar e todos os outros seres humanos eram invisíveis de tão minúsculos, “num planeta que poderia facilmente, visto assim, ser desabitado”.
“A prova mais forte, mais dedutível da existência de vida nessa fotografia é o próprio fotógrafo -o olho no visor ocular, a pressão quente do dedo sobre o botão do obturador”, argumenta a narração. “No momento em que a foto foi tirada, ele é mesmo a única presença humana contida nela.”
Se reflexões como essa fazem seus pensamentos decolarem, é boa partida para a viagem espacial de “Orbital”, o romance da britânica Samantha Harvey que venceu o mais recente prêmio Booker, em novembro. O livro já tinha sido comprado pela brasileira DBA quando ganhou a maior distinção da literatura em inglês, mas saiu nas livrarias só há poucas semanas.
A obra acompanha seis ocupantes de uma nave espacial cuja função é ficar circundando a Terra, a cerca de 400 quilômetros da atmosfera, em um paciente trabalho de manutenção e reconhecimento. São dois russos, um americano, um britânico, um italiano e uma japonesa, o tempo todo num veículo andando a 28 mil quilômetros por hora, mas num cotidiano mecânico e monástico, cuja falta de gravidade torna quase espectral.
Um astronauta conta estar no dia 432 de sua missão, mas viu nesse período milhares de alvoradas e crepúsculos, já que em um único dia eles dão 16 voltas em torno do planeta. “O espaço retalha o tempo em pedacinhos”, orienta o treinamento da equipe. “Todo dia ao acordarem, digam a si mesmos, esta é a manhã de um novo dia.”
A formação em filosofia de Harvey fica patente com poucas páginas de leitura –não que ela recorra a conceitos inacessíveis, mas prioriza sempre a meditação à ação, enchendo as personagens de lembranças, aflições e uma grande habilidade de observação.
“Aqui está Cuba, rosada do alvorecer”, nota uma tripulante, Nell, olhando através do vidro e desejando estar fora da nave. “Apenas seus pés, pendurados acima de um continente, o pé esquerdo tapando a França e o direito, a Alemanha. Sua mão enluvada borrando a China ocidental.”
“Eu queria escrever um livro que fosse tanto um quadro quanto um romance”, diz Harvey, autora à beira dos 50 anos, cabelos loiros e traços finos diante da câmera, em entrevista à Folha.
A escritora não mirou na ficção científica nem no relato de não ficção, mas em elaborar um romance naturalista e contemporâneo no espaço -um gênero de “realismo espacial” ainda tão inexplorado que parece inexistente.
Fez uma extensa pesquisa “de baixo para cima” no site da Nasa, por exemplo, para saber quais tarefas astronautas assumem hoje e ter segurança de que saberia descrever como é uma visão do relevo oeste do Canadá da perspectiva lá de cima.
“Queria que fosse o mais próximo de uma imagem abstrata que palavras poderiam chegar. Porque mesmo quando imagens são estáticas, elas sempre carregam uma multitude de histórias.”
Não é por acaso que a discussão sobre a foto de Michael Collins aparece no romance –e outro que ganha bom espaço é o quadro “As Meninas”, do espanhol Diego Velázquez, pela multiplicidade de perspectivas e leituras abertas na composição de uma única imagem.
“Orbital” tem interesse em desvendar como o ponto de vista transforma pessoas e pensamentos, desbalanceando pesos e medidas, como mostra outra reflexão de Nell.
“Aqui em cima, legal parece uma palavra tão alienígena. É brutal, desumano, avassalador, solitário, extraordinário e magnífico. Não há uma única coisa que seja legal”, diz a narração. “Com frequência, ela se flagra com dificuldades para contar as coisas aos seus de casa, porque as coisas pequenas são mundanas demais e o resto é estarrecedor demais, e não parece haver nada no meio do caminho.”
Com esse tom intimista, é curioso que “Orbital” tenha tido leituras de afirmação política -por destacar diferentes nacionalidades vagando pelo universo num mesmo barco, o potencial cataclismo de uma crise climática guardado no fundo da cabeça.
“É um livro esperançoso e estuda pessoas que agem com base nessa esperança”, diz uma crítica do jornal britânico The Guardian destacada pelo prêmio Booker. “É um livro do Antropoceno, resistente à sina de destruição.”
Harvey concorda quando o repórter traz a impressão de que esse não foi um livro escrito com uma mensagem política em mente. “Não acho que a ficção seja o lugar para expressar minhas opiniões políticas, e eu tenho muitas delas, como todo mundo. Prefiro fazer isso fora da ficção.”
“Ao mesmo tempo, as imagens da Terra são inerentemente políticas. Você nota que não é uma Terra desumanizada, é um planeta vivo e respirante, moldado por decisões humanas. A dimensão política não está em nenhum lugar do livro e está em todo o livro.”
Ou seja, se você está procurando em “Orbital” um comentário que galvanize suas angústias com o futuro do mundo, vai encontrar. E, segundo a experiência de Harvey, muitos leitores procuram.
“Sinto que as pessoas querem encontrar algo que possa telegrafar suas visões, como uma maneira de unir comunidades, de formar coletivos em um momento no qual nos sentimos muito isolados. Temos uma sensação de impotência diante de coisas que nos apaixonam ou nos causam muita preocupação. Talvez, para esses pensamentos e sensações, livros possam ser um centro de gravidade.”
Orbital
Preço R$ 79,90 (192 págs.); R$ 55,90 (ebook)
Autoria Samantha Harvey
Editora DBA Literatura
Tradução Adriano Scandolara