SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O Doge (Departamento de Eficiência Governamental), que Elon Musk liderou nos Estados Unidos até se desligar do governo na última quinta-feira (28), serviu mais como uma ação midiática de sinalização de intenções políticas do que uma forma eficiente de reformar o Estado, segundo Vera Monteiro, professora na FGV Direito SP e conselheira do República.org.

Para ela, no Brasil houve algo parecido durante o governo de Jair Bolsonaro, quando tramitou a PEC (Proposta de Emenda Constitucional) 32.

A PEC 32 foi uma tentativa de fazer uma reforma administrativa. A proposta foi debatida e chegou a ser aprovada em uma comissão da Câmara, mas perdeu força política e não progrediu.

“Nos EUA, as instituições jurídicas reverteram muitas das decisões do Doge, e aqui houve uma falha técnica, porque acharam que seria possível mudar o sistema (da administração pública brasileira) sem levar em conta que as regras são muito complexas”, afirma Monteiro.

Rafael Leite, pesquisador visitante no Instituto Alemão de Pesquisa em Administração Pública, afirma que o Doge é um exemplo do que um país deve evitar ao tentar reformar o funcionamento do Estado.

Segundo ele, o Doge foi estruturado a partir de uma antiga unidade de tecnologia dentro do Office of Management and Budget (Escritório de Gerenciamento e Orçamento), e hoje atua como uma combinação de rede formal e informal, com aliados distribuídos por diversos órgãos do governo.

Esse tipo de descentralização (que já existia antes) poderia ser algo interessante para servir como uma referência para o Brasil, ele afirma, mas a experiência do Doge mostrou que também pode ser algo perigoso.

Não foi só Musk que deixou o governo, mas também o assistente dele Steve Davis, que na prática era quem supervisionava o Doge no dia a dia.

A ideia do departamento era atrair pessoas que trabalham com tecnologia para uma missão de reduzir o tamanho da máquina governamental. Sem Musk e Davis, dificilmente esses profissionais serão atraídos para o serviço público, diz o cientista político Donald Moynihan, da Universidade de Michigan. Para ele, o futuro do Doge é ser um órgão bem menos influente do que foi nos primeiros meses da presidência de Donald Trump ou até mesmo fechar.

Inicialmente, o Doge prometeu cortes de US$ 2 trilhões, depois baixou esse valor para US$ 1 trilhão e, por ora, anuncia que cortou US$ 175 bilhões.

A experiência pessoal de Sahil Lavingia, um engenheiro de softwares que trabalhou no Doge, dá indicações de como os funcionários da equipe de Musk conheciam pouco a máquina pública.

Ele foi demitido após dar uma entrevista para a revista Wired, e, depois disso, publicou na internet um diário de seus dias no órgão. Alocado no Departamento de Assuntos dos Veteranos de Guerra (que tem quase meio milhão de funcionários, segundo o engenheiro), ele não sabia que a instituição tem regras que determinam como os cortes devem ser feitos (por exemplo, os funcionários mais recentes devem ser demitidos antes e os veteranos têm preferência para não ser cortados).

Lavingia disse que descobrir a existência dessas regras foi um “choque de realidade”.

Para Moyhan, o professor da Universidade de Michigan, os cortes mais significativos não se materializaram porque o governo dos EUA não era inchado e nem tinha gente incompetente e corrupta como Musk e Davis imaginavam e não é cortando gente que os gastos vão diminuir significativamente no país.

“O Doge não entendeu a matemática do custo do governo: a maior parte dos gastos não é com salários, e o número de servidores hoje é aproximadamente o mesmo número de funcionários civis dos anos 1970, especialmente pelo corte de 12% durante o governo de Bill Clinton. Isso ocorre porque nós (americanos) terceirizamos muito”.

Para Diogo Costa, presidente da Foundation for Economic Education, o Doge “passou um rolo compressor” pelo funcionalismo público dos EUA e “apertou muito pouco”.

“Minha percepção mudou, porque por mais que a gente ouça histórias de ineficiência e inchaço da máquina, coloca-se uma força tarefa para reduzir pessoal e o que ocorreu, a verdade, foi uma espécie de faxina ideológica, com cortes de programas que não eram muito populares entre eleitores”, afirma ele.

O Doge foi responsável pela saída de cerca de 82 mil pessoas do governo federal dos EUA e há planos para que outras 150 mil deixem seus cargos, de acordo com estimativas do New York Times.

O governo federal americano tem cerca de 2,3 milhões de funcionários civis (tirando o correio). O Doge não tem uma meta oficial de cortes, mas segundo Nick Bednar, da Universidade de Minnesota, estima-se que seja um número de 700 mil.

“Pode levar anos para vermos as principais consequências desses cortes nos serviços públicos. Houve demissões na Administração Federal de Aviação, a agência que gerencia o controle de tráfego aéreo e desde fevereiro, tem havido atrasos significativos e problemas em alguns aeroportos internacionais, como o de Newark, no estado de Nova Jersey”.