FOLHAPRESS – “A História de Souleymane” é, na verdade, duas —a que ele vive como imigrante na França, vindo da Guiné, e a que ele deve contar para conseguir o visto de refugiado político.

A primeira é mais próxima de nós. Ele trabalha fazendo entregas a domicílio, com sua bicicleta. Uma cena familiar para quem vive em grandes cidades, no Brasil, por exemplo. Como a cena é dolorosa em si, o filme se esforça apenas para que acreditemos nela, tal como narrada.

Com isso, temos um filme que lembra “Ladrões de Bicicletas”, de De Sica. Quer que acreditemos que esta é a verdade da vida dos imigrantes porque seu autor, talvez sinceramente, assim o crê. “Ladrões de Bicicletas”, contudo, foi feito há quase 80 anos, e Boris Lojkine, diretor do filme, compreenderá que o espectador contemporâneo olhe para “Souleymane” com alguma desconfiança.

O filme se esforça para narrar um cotidiano não longe do, vamos dizer, verossímil. Ninguém dirá, porém, que é novo. Se algo de novo existe no filme vem de certos problemas imediatos enfrentados por Souleymane: ele é um trabalhador clandestino (não tem documentos de trabalho), usando a identidade de um outro imigrante. Por esse uso, ele paga ao sujeito uma quantia nada desprezível e tem um medo enorme quando, por acaso, é chamado por algum policial.

Pior, ele deve dinheiro a outro imigrante legalizado, falsifica certos documentos e inventa uma história falsa —e supostamente boa— para contar no escritório de imigração, a de que ele seria perseguido em seu país por razões políticas.

Em linhas gerais, o filme é bastante honesto. Procura falar da situação de precariedade da vida dos imigrantes na França, sem fazer grandes dramas. É verdade que isso é bastante corrente no cinema francês. E que a situação de Souleymane na França, por terrível que seja, é dez vezes melhor do que seria para quem teve a má ideia de procurar os Estados Unidos de Trump, por exemplo.

Mas estamos longe do paraíso. Por exemplo: para chegar a tempo até a condução que o levará à residência coletiva onde vive, enfrenta uma espécie de gincana. Embora haja subtramas —como a mãe doente na Guiné, e a noiva, que ainda espera pelo retorno de Souleymane, mas já recebeu outra proposta de casamento—, no fim, o que mantém o interesse no filme é saber como ele se sairá na entrevista final. Pois o espectador torce por ele, claro.

“A História de Souleymane” tem um mérito claro, que consiste em nunca permitir que a narrativa descambe para o dramalhão, ao mesmo tempo em que descreve uma situação bastante dramática. Ela coincide em grande medida com a de Abou Sangaré, que também atravessou a África, de Guiné à Argélia, dali à Líbia, antes de chegar à França, onde viveu como imigrante clandestino, e cuja presença é outro ponto notável do filme.

De modo que o fato de destacar-se como ator central de “Souleymane”, de ganhar o prêmio César de revelação masculina do cinema francês e tudo mais conforma uma história tipo de Cinderela. Sim, pelo menos por ora ele vive um conto de fadas. Seus colegas imigrantes, nem tanto.

Ele corre o risco de a carruagem virar abóbora, é verdade, caso seus dotes não sejam confirmados por trabalhos futuros. Para outros imigrantes ilegais, o risco é o de deportação. Talvez a sua interpretação (notável na parte final, diga-se) seja o que mais justifique a presença do filme numa seção de prestígio do Festival de Cannes, como a Um Certo Olhar.

A HISTÓRIA DE SOULEYMANE

– Avaliação Bom

– Classificação 12 anos

– Elenco Abou Sangaré, Alpha Oumar Sow, Nina Meurisse

– Produção França, 2024

– Direção Boris Lojkine

– Onde ver Nos cinemas