SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Em junho de 1974, o Destacamento de Operações de Informações (DOI) do 2º Exército apreendeu uma agenda com um militante de esquerda. Entre os nomes no item que chamaram a atenção do aparelho repressivo, estava o daquele que se tornaria o maior fotógrafo brasileiro: Sebastião Salgado.

A informação está em um documento no acervo do Serviço Nacional de Informações (SNI), o todo-poderoso aparato de espionagem da ditadura militar. Mas, quando o nome de Salgado caiu no radar da repressão, já era tarde —ele e sua mulher, Lélia Wanick Salgado, já tinham fugido do Brasil e viviam na França havia cinco anos.

Com os dois fora do país, os militares nunca conseguiram descobrir muito sobre a atuação política do casal. Até hoje, esse é um dos pontos menos explorados da biografia de Sebastião Salgado —e que, com a morte dele, ainda vai requerer mais pesquisas.

O fotógrafo falou pouco sobre o assunto —e quase sempre de um jeito vago—, mas ele pertenceu à Aliança Libertadora Nacional, a ALN, que teve como líder Carlos Marighella, morto em 1969. Apesar disso, não há notícias de que Salgado tenha feito parte de ações armadas.

Salgado chegou a dizer, em entrevista de 2014 ao jornal gaúcho Zero Hora, que participou de “um grupo próximo” a Marighella. Mas, em conversa privada em maio do ano passado, confirmou que o grupo era mesmo a ALN.

Na mesma conversa, ele disse que doava todo o seu salário na empresa Neves e Paoliello para a organização; na época, trabalhava criando um plano econômico para a agricultura na região leste do estado de São Paulo, “dentro dos princípios socialistas”.

À Zero Hora, o fotógrafo disse que nunca conheceu Marighella, mas que a empresa era “uma base do pessoal” do guerrilheiro.

Ao que tudo indica, a militância de Lélia jamais foi descoberta. Há uma única menção a ela nos documentos sobre Salgado, e ela é citada “Lélia de Tal”.

Economista de formação marxista, Salgado chegou a atuar na Ação Popular antes de entrar para a ALN. E levou a política para todo o seu trabalho, com séries sobre trabalhadores, o garimpo e os grandes êxodos de pessoas pelo mundo, entre outros.

Segundo Salgado, quando a barra pesou para valer com o AI-5, a ALN decidiu que era melhor os mais jovens irem para fora do país —entre eles estavam o fotógrafo e sua mulher.

“Quando chegamos à França, Lélia e eu éramos maoístas. Vivíamos na embaixada da China buscando o livrinho vermelho para distribuir em Paris. Depois, viramos marxistas-leninistas”, afirmou.

O casal escapou do Brasil a tempo, mas a ditadura esteve atenta à atuação do fotógrafo no exterior. Em certo momento, uma militante interrogada pelos militares cita o fotógrafo como alguém que apoiava exilados que chegavam à França —o que era verdade.

Segundo Salgado, ele e Lélia ajudavam vítimas de tortura que chegavam ao país a conseguir atendimento médico, exilados a se estabelecer etc. E também viajavam pela França tentando levantar fundos para a causa. Lélia chegava a sambar, literalmente, para levantar dinheiro.

Em 1974, o fotógrafo já era um dos investigados em um Inquérito Policial Militar, uma das ferramentas da ditadura para criminalizar opositores, com base na Lei de Segurança Nacional.

Diante disso, um informe da Divisão de Segurança e Informações do Itamaraty, em 1975, inclui o nome dele em uma longa de lista de brasileiros dedicados a atividades subversivas no exterior. Isso criou problemas para o fotógrafo renovar o passaporte, documento essencial para seu trabalho —na época, Salgado trabalhava para a agência Gamma.

“Este documento e a cobertura que lhe proporciona a agência Gamma são instrumentos valiosíssimos para o cumprimento de suas missões subversivas contrárias ao governo brasileiro”, diz um telegrama do Itamaraty para a embaixada em Paris.

A mesma correspondência chega a dizer que o grupo ao qual Salgado pertencia tinha por objetivo “treinar terroristas, facilitar a fuga do Brasil de elementos desarticulados de outros movimentos, ou foragidos, localizando-os, providenciando documentação e empregando-os em ações subversivas”.

Questionado pelo Itamaraty por um parecer, o SNI chega a recomendar que, se o passaporte for renovado, o documento tenha uma validade menor para viagens à Argélia; era onde viviam alguns exilados brasileiros na época, inclusive Miguel Arraes, ex-governador de Pernambuco.

Em novembro de 1976, o próprio diretor da Gamma chegou a ir à embaixada, tentando interceder pelo funcionário, que ele queria enviar para a África do Sul e, posteriormente, para o Brasil. Na época, Salgado entrou com um pedido de passaporte francês, mas não desistiu até conseguir o brasileiro.

Um informe no acervo do SNI mostra que a ditadura passou perto de associar o fotógrafo à luta armada em 1977, em um memorando que diz que o grupo do qual ele fazia parte era “constituído por terroristas brasileiros originários da ALN, PCdoB, MR-8 e VAR-Palmares”.

Os documentos mostram que a decisão de Salgado e Lélia de deixarem o Brasil foi acertada. Se antes de partirem vinham conseguindo voar abaixo do radar, não tardaria para que virassem alvos.