SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Um engenheiro civil olha para o alto e se perde na beleza do que vê, assim como um astrônomo fica fascinado ao observar um céu de estrelas. O engenheiro, no caso, é Everaldo Pletz, paranaense de Londrina e um dos maiores especialistas brasileiros em construções de madeira.
“São milhares de peças pequenas lá em cima, que te deixam maravilhado com a profusão de detalhes e a simetria. É como se fosse um bordado”, diz Pletz sobre arcos e outros itens de madeira que sustentam a cobertura do ginásio de tênis do complexo do Pacaembu, uma construção da segunda metade da década de 1930.
Feita com peroba-rosa -hoje uma madeira rara, em risco de extinção e protegida por lei-, a estrutura à qual Pletz se refere foi concebida por Erwin Hauff, engenheiro austríaco que se mudou para o Brasil em 1922.
Tanto o ginásio destinado ao tênis quanto o poliesportivo, também erguido pela empresa de Hauff quase nove décadas atrás, foram recentemente restaurados pela Allegra Pacaembu, que detém a concessão do complexo por 35 anos.
No primeiro, as intervenções chegaram ao fim em junho de 2024 depois de um ano e meio de trabalho. No segundo, as obras foram concluídas em dezembro de 2024 após quase dois anos em obras. Os ginásios integram a Mercado Livre Arena Pacaembu, como o complexo passou a ser chamado após acordo firmado entre a empresa especializada em operações online e a concessionária.
No universo das construções, são os arquitetos que têm sua atividade associada ao fazer artístico. Mas Hauff, um engenheiro, embaralhou esse tipo de classificação, na visão de Pletz. “Ele foi um artista com alto domínio da técnica construtiva, inspirado pelos valores do modernismo.”
“Há um casamento da arquitetura com a engenharia nos trabalhos do Hauff”, diz a arquiteta Sol Camacho, responsável pelo escritório Raddar, incumbido da pesquisa histórica que fundamentou o projeto de modernização e restauro do complexo.
Nascido em Viena, Hauff tocava violino na juventude. Deixou a capital austríaca para estudar engenharia civil na Escola Politécnica de Munique, na Alemanha, onde passou a se interessar por madeira. Queria conhecer os tipos usados para construção.
Formou-se em 1920 e cruzou o Atlântico dois anos depois. Ainda que tivesse referências sobre a variedade de madeiras do Brasil, Hauff se surpreendeu com a abundância de espécies da mata atlântica.
Há um século, algumas das madeiras consideradas nobres entre os brasileiros eram importadas, como o pinho de riga, que vinha principalmente do Leste Europeu. Abundante no sudeste, no Sul e no Centro-Oeste do país, a peroba-rosa ainda era pouco explorada naquele período e foi justamente por ela que Hauff se interessou.
A partir dos anos 1930, a empresa dele ganhou fôlego graças a uma série de inovações para a realidade local que passaram a constituir o Sistema Hauff. Seu trabalho se voltou para obras com grandes vãos, como ginásios de esporte, pontes e indústrias. Eram vãos que chegavam a 70 m, como o hangar da Varig no aeroporto de Congonhas, da década de 1940.
Hauff apostava na utilização de pequenas peças de madeira, que tornavam as obras mais rápidas e baratas. Com elas, compunha treliças, que dão mais rigidez aos arcos sob os telhados. “O sistema treliçado é uma estrutura com barras dispostas formando triângulos. Essa é uma boa maneira de descobrir onde está a mão do Hauff. Se observar quadrados ou trapézios, esteja certo de que não foi ele”, conta Pletz.
O desafio de vencer grandes vãos com uma variedade de peças de peroba-rosa de curtas dimensões, formando uma geometria treliçada, está na base do Sistema Hauff. Mas não só. Em vez de parafusos, ele recorria a cavilhas de madeira, que são pinos usados para unir duas peças, cada uma delas com um furo de dimensão calculada.
Sobravam ideias, mas faltavam profissionais para dar vida a elas. Hauff, então, voltou para a Europa e de lá trouxe cerca de 200 pessoas de origem germânica, especialmente carpinteiros, em um navio.
“Não temos registro de sistemas tão sofisticados com treliças de madeira no Brasil antes da chegada dele”, afirma Rafael Carneiro Bastos de Carvalho, arquiteto responsável pelas obras do Pacaembu e diretor da concessionária. “Hauff é considerado o patrono das construções de madeira no país.”
O Sistema Hauff viveu seu auge dos anos 1930 à década de 1950, período em que centenas de obras foram erguidas em São Paulo, Paraná, Minas Gerais e outros estados. Além dos ginásios do Pacaembu e do hangar da Varig, a E. Hauff & Cia. construiu galpões e pontes, como uma em Guarulhos, com vão de 52 m -desmontada décadas depois.
O austríaco morreu em 1960, quando sua empresa já não tinha o prestígio de antes. E como sempre acontece no Brasil, seu pioneirismo foi sendo esquecido. No início dos anos 1980, porém, Pletz e Sandro Fabio Cesar, seu ex-aluno na Universidade Estadual de Londrina (UEL), começaram a pesquisar o trabalho do engenheiro.
Pletz, então, recomendou que Cesar fizesse um mestrado sobre o tema com Carlito Calil Júnior, da engenharia da USP de São Carlos. Em 1991, ele apresentou a tese “Estruturas Hauff de Madeira do Brasil”, ainda hoje o estudo mais relevante sobre essas inovações.
Agora, a restauração dos ginásios do Pacaembu encerra um dos novos capítulos desse processo de redescoberta de Hauff.
Pletz e sua equipe se encarregaram da inspeção de todas as peças de madeira dos ginásios e, posteriormente, da execução dos ajustes. Foi ele quem alertou Carvalho, da Allegra, que 2 dos 12 pontos de contato dos arcos com as fundações no ginásio de tênis tinham apodrecido, e os demais corriam risco de deterioração.
O problema tem origem no final dos anos 1960, quando a Prefeitura de São Paulo instalou o que Carvalho chama de “cálices metálicos”, peças onde os arcos entravam ao se aproximar do chão. “Foi um erro porque a madeira precisa respirar, ficar exposta. Quando está enclausurada, é mais fácil desenvolver fungos e outros tipos de ataques biológicos”, afirma.
A concessionária trocou os 12 pontos de apoio. Sem a possibilidade de usar peroba-rosa, optou pelo cumaru, uma madeira certificada, para substituir as peças.
Outra das intervenções foi a retirada das camadas de tinta sobre a madeira: verde no tênis e cinza no ginásio poliesportivo. Segundo Sol Camacho, depois da inauguração do Pacaembu, em 1940, “houve um momento em que a madeira deixou de ser valorizada e alguém resolveu pintar aquelas peças para que parecessem metálicas. Hoje em dia, sabemos como estas estruturas, com madeiras nobres, são preciosíssimas”.
A Allegra estima ter gasto cerca de R$ 30 milhões na restauração das estruturas de madeira dos dois ginásios.
FEIRA DE ARTE É CHANCE DE CONHECER HAUFF
Para quem quer conhecer as estruturas de madeira dos ginásios do Pacaembu, concebidos por Erwin Hauff, a ArPa, feira de arte, e a Made, de design, são oportunidades. Esses eventos vão acontecer simultaneamente nos dois espaços, de 28 de maio a 1º de junho.