SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O canto das sereias sempre foi alvo de muita desconfiança em várias mitologias. Da perigosa viagem de Odisseu aos filmes de horror com baixo orçamento, o som angelical seduz marinheiros e manipula os sentimentos humanos, não raro com desdobramentos fatais.
Sem espaço para asas e rabos de peixe no mundo moderno, “Sereias”, série da Netflix que estreou nesta quinta-feira, busca traduzir, entre prédios e mansões luxuosas, o elo entre beleza e crueldade numa disputa de duas irmãs.
“Estamos diante de uma briga entre mulheres que já vimos diversas vezes. Nós pensamos: ‘elas são monstruosas’, ‘alguém vai morrer’. É quando tudo começa a mudar e percebemos que a maldade não pertence a essas personagens”, diz Molly Smith Metzler, criadora do seriado, uma adaptação da peça “Elemeno Pea”, de sua autoria.
Quando o pai de Devon, personagem de Meghann Fahy, recebe o diagnóstico de demência, ela implora pelo apoio da caçula que não vê há alguns anos. Ao receber um arranjo de frutas como única resposta, decide que passou da hora de encontrar Simone, papel de Milly Alcock, e por algum juízo em sua cabeça. A protagonista viaja até um vilarejo à beira-mar e encontra uma espécie de realidade paralela.
Entre exércitos de criados, casas imponentes e chás da tarde, Devon descobre uma relação no mínimo estranha entre Simone e sua chefe. A garota vive para agradar Michaela Kell, mulher de um bilionário, vivida por Julianne Moore, que tenta sair da sombra do marido. Desejos e angústias sobem pelas paredes e hierarquias sociais serão desafiadas no decorrer de um final de semana.
“A briga de classes é um tema que sempre ressurge em meus trabalhos. Suas complexidades estão maiores a cada dia e existem inúmeras formas de abordá-la. No caso de ‘Sereias’, a série vai além dos ricos e existem diferentes vozes em jogo. Queríamos que esta comunidade refletisse o que está acontecendo na América”, afirma Metzler.
Ela cita “Succession” entre as produções recentes que conquistaram o público ao zombar dos mais ricos. Outra delas, “The White Lotus”, é inclusive responsável por descobrir Fahy, cuja carreira demorou a engrenar. Os papéis no teatro foram separados por longos hiatos e os sets de filmagem a rejeitaram por muito tempo. Hoje, ela vive seu primeiro papel principal na televisão, mas diz se identificar bastante com Devon.
“Eu vejo muito de mim na personagem por ela ter enfrentado situações que jamais teria escolhido para si. Ela é muito resiliente. Quando se é uma atriz em início de carreira, existe um nível de resiliência necessário para sobreviver”, diz a artista.
Se na série de Mike White sua Daphne nasceu em berço de ouro, aqui ela experimenta o espectro oposto. Mesmo que tenha abandonado o navio para viajar de ônibus semi-leito, Fahy conta que a inversão foi muito divertida e que as duas personagens tentam esconder suas verdadeiras faces.
Simone, por sua vez, tenta afogar os traumas de uma criação precária com roupas de grife, jantares de gala e o relacionamento com um homem mais velho. Ela desenvolve uma admiração doentia pela patroa e faz o possível para esconder as próprias raízes.
“É fácil dizer que Simone é simplesmente insuportável. Mas sua personalidade é um instinto entre a vida e a morte. Seu comportamento pode definir o futuro e os riscos são muito altos. Estamos sempre tentando parecer com quem não somos”, afirma Alcock. Com 25 anos, ela acumula figuras que questionam o feminino, caso de sua participação em “A Casa do Dragão”, e se prepara para viver a nova Supergirl no futuro da DC Comics.
Se no original os homens não têm a mesma presença, “Sereias” também se destaca pelo modo como os representa. Do poderoso patrão casado com Michaela, papel de Kevin Bacon, ao cinquentão que namora Simone, interpretado por Glenn Howerton, eles desmontam clichês masculinos ao expor vulnerabilidades.
Conhecido por viver homens raivosos -como o ambicioso empresário de “Blackberry”, Jim Balsillie-, Howerton exalta a doçura de seu personagem e agradece a chance de se afastar dos maníacos que acumula na carreira.
“Mesmo que viva em uma realidade paralela, acho que o Ethan [Howerton] é uma pessoa muito amável. É possível que essa bolha tenha o impedido de se tornar humilde. Mas ele carrega muita dor e eu adoraria vê-lo depois do final da série.”
Nem por isso eles deixam de ser uma pedra no sapato. “O charme de Peter Kell [Bacon] esconde sua natureza. Ele é encantador, tem uma boa relação com os funcionários, mas mesmo assim detém a palavra final”, diz Metzler. “São os homens da série que, no geral, preservam o estigma das sereias e culpam as mulheres por seus próprios erros. Talvez eles próprios estejam proferindo o canto da destruição.”
SEREIAS
Quando Disponível na Netflix
Classificação 14 anos
Elenco Meghann Fahy, Milly Alcock e Julianne Moore
Produção Estados Unidos, 2025
Criação Molly Smith Metzler