RECIFE, PE (FOLHAPRES) – Uma cena inédita nos quase 80 anos do Festival de Cannes chamou a atenção do público no último domingo (18), momentos antes da estreia do novo filme do cineasta Kleber Mendonça Filho, “O Agente Secreto”, quando um verdadeiro Carnaval se fez presente.
Nada de vestidos de gala, saltos altos ou smokings. Quem abriu alas para a comitiva brasileira no tapete vermelho revelou ao mundo outro tipo de elegância, a da herança ancestral dos trabalhadores pernambucanos do início do século 20. Era o grupo Guerreiros do Passo, acompanhado da Orquestra Popular do Recife tocando ao vivo.
O vídeo do cortejo dos passistas seguido pela equipe do filme, com Wagner Moura arriscando uns passos, pela ministra da Cultura, Margareth Menezes, e outros nomes do cinema nacional viralizou rapidamente nas redes sociais.
Internautas demonstraram curiosidade na escolha da produção anunciar a chegada da comitiva desta forma, além da caracterização incomum dos passistas, sem as cores chamativas usuais, e do uso de grandes guarda-chuva em vez das sombrinhas de frevo. A estética apresentada pelos passistas lembra as pessoas retratadas pelas fotografias do francês Pierre Verger.
Em sua passagem pelo Recife nos anos 1940 ele fotografou freneticamente o frevo nas ruas. São suas imagens que formam grande parte do acervo da memória que se tem sobre os primórdios do ritmo enquanto dança.
Fundado há 20 anos, o grupo dos Guerreiros nasceu do desejo de ex-alunos do mestre Nascimento do Passo de dar continuidade ao seu legado e atuar na salvaguarda do frevo dançado. Foi assim que escolheram promover aulas gratuitas em um lugar público, a Praça do Hipódromo, no Recife, todos os sábados à tarde.
Das 15h às 17h30, os passistas se tornam professores, fornecem as sombrinhas para os alunos usarem, levam toda a estrutura de som e água para refrescar o fervor do sol da capital pernambucana. Não há necessidade de se inscrever, o intuito é propagar o aprendizado do frevo de forma democrática e aberta.
Por muitos anos o grupo levou o projeto de forma voluntária, mantendo as aulas com recursos próprios e movidos pelo amor ao frevo e pela crença no seu potencial emancipador, sem apoio de instituições. Mas recentemente aprovaram o projeto educativo no Funcultura, edital de incentivo do Governo de Pernambuco, e mantém assim as aulas semanais em paralelo às suas outras atividades, como o laboratório de pesquisa e os espetáculos.
Anualmente os Guerreiros do Passo também participam da prévia carnavalesca Escuta Levino, que desfila pelas ruas do Centro do Recife. Foi em uma dessas saídas que Kleber Mendonça Filho os conheceu e é também um desses momentos de apresentação entre a multidão de foliões que aparece em seu longa anterior, o documentário “Retratos Fantasmas”.
A parceria entre os Guerreiros e o diretor se repetiu em “O Agente Secreto” para uma cena de Carnaval de rua. Foi um pouco dessa atmosfera que viajou de Pernambuco para Cannes, marcando assim a primeira saída internacional do grupo.
“Recebemos o convite de Emilie Lesclaux, produtora do filme, há cerca de um mês e preparamos tudo no sigilo para não dar ‘spoiler’ e ser essa surpresa geral que foi”, conta o coordenador do grupo e porta-estandarte no tapete vermelho, Eduardo Araújo.
“É um momento especial na vida da gente, uma realização de um sonho. Podíamos ter o desejo de viajar para fora do Brasil e conhecer novos lugares através da força do frevo, mas estar aqui em um evento desses, da dimensão do Festival de Cannes, e com a repercussão que está sendo nossa participação é realmente a concretização do que sempre defendemos, que é a potência da cultura popular”.
Oito passistas viajaram para participar do evento. E apesar do frevo ser parte integrante de suas vidas há décadas, poucos são os que realmente vivem de suas atividades de artistas.
De segunda a sexta, em horário comercial, eles atuam nas suas respectivas profissões, como agente comunitário de saúde, professores, empreendedor de quiosque de coco, mestre de capoeira em ONG voltada para jovens.
À noite e aos fins de semana, vestem trajes dos trabalhadores dos anos 1930, 1940 e 1950 para reviver o nascimento do frevo, ritmo secular que nasceu nas ruas da capital pernambucana, virou símbolo do Estado aos olhos do restante do após e, no último fim de semana, cruzou o Atlântico.
“Havia uma ideia que o frevo é simplesmente uma dança do Carnaval, da alegria, dos sorrisos dos passistas”, diz a passista e professora Lucélia Albuquerque. “Ele é isso também, mas não só. Não podemos esquecer que sua origem é de um povo que se rebelou, se expressou através da cultura. Quando chegamos no tapete vermelho, trouxemos para Cannes essa estética da rua, do povo, essa temperatura do asfalto do Recife.”