SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Um projeto de lei do governo Trump, aprovado nesta quinta-feira (22) na Câmara dos Deputados americana e que estenderia cortes de impostos e aumentaria gastos militares, está amplificando preocupações com a dívida e o déficit entre investidores de títulos, um poderoso grupo de participantes do mercado que influencia fortemente quanto custa para o governo financiar seu orçamento.

As preocupações do mercado se intensificaram nesta quarta (21) e quinta-feira (22), enquanto os republicanos no Capitólio negociavam e aprovavam o amplos cortes de impostos definidos em 2017, além de alguns novos, sem reduzir significativamente os gastos. A medida agora vai ao Senado americano.

Esses temores se manifestaram em rendimentos acentuadamente mais altos nos títulos da dívida do governo dos EUA, conhecidos como treasuries, à medida que os investidores exigiam um prêmio maior para emprestar ao governo.

O rendimento do “treasury” de 30 anos, um indicador dos custos de empréstimos do governo no longo prazo, estava em 5,13% nesta quinta, o nível mais alto desde outubro de 2023. A rentabilidade é inversamente proporcional aos preços, isto é, os investidores estão pagando menos e exigindo mais retornos para dar o voto de confiança de que os EUA honrarão as dívidas.

O de 20 anos também subia, a 5,14%, o nível mais alto também desde novembro de 2023. Já o de 10 anos, mais monitorado pelo mercado, estava em 4,590%, um ligeiro recuo em relação aos 4,595% do dia anterior.

Na quarta, também houve uma liquidação no mercado de ações, ajudando a arrastar o S&P 500 1,6% para baixo no dia, sua queda mais acentuada em um mês.

“É desnecessário dizer que se Trump está, de fato, olhando para o mercado de treasuries como um barômetro da aprovação dos investidores sobre as ações em Washington, então a recente liquidação que levou os rendimentos de 30 anos de mínimos de 4,65% este mês para 5,095% é, sem dúvida, um desenvolvimento preocupante”, disse Ian Lyngen, estrategista de taxas de juros do BMO Capital Markets.

Os investidores de títulos já estavam apreensivos com a política tarifária oscilante do presidente Donald Trump. Então, as disputas desta semana sobre o que ele chamou de “grande e belo projeto de lei” desencadearam o novo surto de turbulência no mercado de títulos. O presidente havia pressionado os legisladores republicanos na terça-feira (20), visitando o Capitólio e advertindo que não avançar com o projeto levaria a impostos mais altos.

Falando com repórteres na terça-feira, Raphael Bostic, presidente do Federal Reserve Bank de Atlanta, alertou que a volatilidade no mercado de treasuries poderia aumentar a já elevada incerteza sobre as perspectivas econômicas.

Isso corre o risco de tornar as pessoas “ainda mais cautelosas sobre como se envolvem”, disse. “Se isso acontecer, então terei que avaliar até que ponto isso deve mudar minha perspectiva sobre como a economia vai se comportar”.

‘AUMENTANDO O VOLUME’

Por décadas, os defensores da austeridade fiscal alertaram que a carga da dívida americana era insustentável e que gastos desenfreados financiados com dinheiro emprestado eventualmente afastariam os investidores de emprestar aos Estados Unidos.

Esses temores agora estão se consolidando mais fortemente no mercado de títulos e correm o risco de se espalhar ainda mais.

No mês passado, o lançamento caótico das tarifas de Trump sobre os principais parceiros comerciais fez com que títulos, ações e o dólar caíssem simultaneamente de valor, uma combinação rara que desafiou o papel tradicional dos ativos dos EUA como fonte de segurança e estabilidade.

O presidente recuou em suas tarifas mais altas após um aumento particularmente severo nos rendimentos dos treasuries, que foi iniciado por vendas devido a estratégias de negociação controladas por computador, mas alimentado por preocupações de que investidores estrangeiros estavam evitando títulos dos EUA.

Esse recuo acalmou os mercados de certa forma, mas os primeiros sinais de nervosismo no mercado de títulos estão de volta.

Agora, a preocupação é que o projeto de lei fiscal do governo aumentará o déficit federal, que é a diferença entre a receita e os gastos do governo. O Escritório de Orçamento do Congresso estimou na quarta-feira (21) que o projeto, conforme redigido no início desta semana, adicionaria mais de US$ 3 trilhões (R$ 17 trilhões) ao déficit.

Isso significaria mais empréstimos —a dívida federal dos EUA está a caminho de estabelecer um recorde, em relação ao tamanho da economia.

“Tínhamos um caminho orçamentário insustentável, e estamos aumentando o volume”, disse Lou Crandall, economista-chefe da Wrightson ICAP, uma empresa de pesquisa. Ele falou à margem da conferência anual do Fed de Atlanta, que foi realizada esta semana em Fernandina Beach, Flórida, e focada na estabilidade financeira.

O aparente progresso nas negociações congressuais sobre cortes de gastos parece ter amenizado as piores preocupações dos investidores por enquanto, mas os rendimentos permanecem próximos de onde estavam logo antes de Trump ser compelido a pausar muitas de suas tarifas.

A MELHOR COMPRA DO MUNDO?

O mercado de títulos poderia influenciar novamente os tomadores de decisão em Washington?

“Achamos que será necessário um aumento muito maior para impor qualquer aparência de disciplina em seu processo”, escreveram analistas da Evercore ISI em uma nota sobre as disputas sobre o projeto de lei fiscal no Congresso.

Os rendimentos subiram mais recentemente depois que a Moody’s seguiu as outras principais agências de crédito e rebaixou a classificação de primeira linha dos Estados Unidos na sexta-feira (16). Os principais conselheiros econômicos de Trump condenaram imediatamente a decisão, buscando atribuir a culpa ao governo Biden e oferecendo um endosso completo aos ativos dos EUA.

Os títulos dos EUA “são a melhor compra do mundo”, disse Kevin Hassett, diretor do Conselho Econômico Nacional, a repórteres na Casa Branca na segunda-feira (19). Ele acrescentou que eles se tornariam uma “compra ainda melhor uma vez que todas as nossas políticas estejam em vigor”.

Mas alguns investidores estão céticos, especialmente se o Congresso controlado pelos republicanos não fizer mudanças substanciais no projeto atual. Os termos finais ainda estão sendo negociados, após reação negativa de republicanos que buscaram mais medidas para conter gastos, alguns citando o rebaixamento da Moody’s para apoiar sua posição.

“Não acho que vimos o fim das negociações”, disse Mike Goosay, diretor de investimentos de renda fixa da Principal Asset Management. Seria um “negativo líquido aumentar a carga da dívida em mais US$ 3 ou US$ 4 trilhões”, disse sobre a proposta atual.

Grande parte da dívida atual do governo foi acumulada por ambos os partidos quando as taxas de juros eram muito mais baixas. Agora, renovar essa dívida com novos títulos é muito mais caro, representando mais de US$ 1 trilhão dos gastos do governo este ano, aproximadamente o dobro do que era há cinco anos.

Custa mais ao governo pagar juros do que financiar a defesa nacional ou pagar pelo Medicare e Medicaid. A conta de juros é segunda apenas aos gastos com a Seguridade Social.

E se os investidores começarem a se afastar do mercado de títulos do Tesouro americano de forma mais agressiva, isso poderia começar a causar atritos nos mercados.

Nathaniel Wuerffel, chefe de estrutura de mercado do BNY Mellon, disse em uma entrevista na conferência do Fed de Atlanta que um grande mercado de treasuries poderia ser sustentado se a economia estivesse crescendo robustamente e compradores e vendedores pudessem transacionar facilmente entre si.

Se essas condições enfraquecerem, e se “os custos de serviço da dívida acelerarem, então isso poderia criar alguns problemas”, alertou Wuerffel, que anteriormente trabalhou no Federal Reserve de Nova York.

PREPARANDO-SE PARA UM PONTO DE INFLEXÃO

A imigração mais baixa e tarifas mais altas, que ameaçam estimular uma inflação mais alta, já levaram o Fed (Federal Reserve, banco central dos EUA) a suspender os cortes nas taxas de juros para o futuro previsível, enquanto avalia o impacto das políticas do governo.

E se as tarifas reduzirem significativamente as importações dos EUA, os estrangeiros terão menos dólares para reinvestir no mercado de treasuries, potencialmente esgotando uma fonte crucial de financiamento do governo enquanto o atual governo continua a emitir nova dívida.

As taxas de curto prazo do Fed têm influência sobre os rendimentos de longo prazo dos treasuries, então se o banco central mantiver suas taxas mais altas por mais tempo, o custo para o governo provavelmente aumentará com o tempo.

“Vamos ver nossas despesas com juros subirem”, disse Peter Tchir, chefe de estratégia macro da Academy Securities, uma empresa de investimentos. “Por enquanto, é apenas um sangramento lento, mas em algum momento teremos que abordar todos esses gastos obrigatórios.”

Os investidores estão tentando descobrir o “ponto de inflexão” no qual o nível da dívida do governo assusta os traders o suficiente para estimular séria turbulência no mercado, disse Crandall da Wrightson ICAP. “O nível da dívida é economicamente doloroso, mas ainda não está nos esmagando”, disse ele.

John Williams, presidente do Fed de Nova York, reconheceu que houve maior discussão sobre se os investidores ainda queriam estar tão fortemente investidos na dívida do governo dos EUA e ativos relacionados. Até agora, essas preocupações têm sido principalmente “pessoas falando sobre falar sobre coisas” em vez de uma mudança real no comportamento dos investidores, disse ele em uma conferência em Nova York na segunda-feira.

Os investidores estão “obviamente pensando sobre a volatilidade nesses mercados”, disse. Mas, acrescentou, a economia dos EUA ainda é “uma economia incrivelmente dinâmica de alto crescimento e, em relação aos nossos pares, uma que é muito segura e sólida.”

Dito isso, mesmo um recuo modesto por parte dos investidores poderia pressionar os mercados dos EUA.

Tchir espera uma demanda gradualmente decrescente nos leilões de dívida que o Departamento do Tesouro realiza e, ao longo do tempo, “máximas mais altas” nos rendimentos sempre que houver um pico, disse ele.

“Se você quer reduzir sua exposição aos EUA, os treasuries são a maneira mais fácil de fazer isso”, disse ele.