MILÃO, ITÁLIA (FOLHAPRESS) – “Hoje é um dia de luto. Estamos celebrando o fim de uma relação histórica, de sangue, com a nossa comunidade no exterior”, disse o deputado italiano Fabio Porta, do Partido Democrático, de oposição. Ele foi eleito pelos italianos que vivem na América do Sul.

Porta participou da sessão de mais de seis horas na Câmara italiana que, nesta terça (20), confirmou o decreto apresentado pelo governo de Giorgia Meloni que restringe a duas gerações o acesso à cidadania italiana para descendentes que vivem no exterior. Nas diversas intervenções que fez no plenário, o deputado criticou duramente o texto.

“Pela segunda vez no nosso sistema, se consideramos as leis raciais, o governo está legitimando a existência de duas categorias de italianos com direitos e deveres diferentes”, disse no plenário, em referência às leis do período fascista, a partir de 1938, que discriminava a comunidade judaica no país, com veto a postos de trabalho e a frequentar a escola.

“É uma comparação forte porque nos leva a uma época de ditadura e hoje não estamos numa ditadura. Mas foi feita uma lei que estabelece a existência de duas categorias de italianos, uma superior e outra inferior”, disse à Folha de S.Paulo, logo após a conclusão da votação. “Uns terão todos os direitos, aqueles nascidos e residentes na Itália, outros serão uma categoria de série B que não poderão transmitir a cidadania.”

O governo justifica a medida pela necessidade de coibir o que vê como exageros nos pedidos feitos por descendentes de antigos emigrados que vivem na América do Sul e que não teriam mais vínculo com a Itália. Também acusa agências que oferecem serviços ligados a pedidos de cidadania de comercializarem o direito ao passaporte italiano. E afirma que os interessados na cidadania não têm intenção de morar na Itália, mas sim aproveitar vantagens como livre circulação na União Europeia e entrada sem visto nos Estados Unidos.

Historicamente defendida pelos partidos de ultradireita, a cidadania por direito de sangue sofreu sua maior mudança desde a legislação de 1992. A alteração foi uma iniciativa do governo Meloni, defendida pelo vice-premiê Antonio Tajani (Força Itália). A Liga, de Matteo Salvini, mostrou divergência em alguns pontos durante a tramitação, mas votou a favor do decreto no Parlamento.

“Acredito que os verdadeiros motivos do governo são outros. Há uma parte de diplomatas que nunca viu favoravelmente a cidadania a milhões de italianos no exterior. E há pressões internacionais”, afirma Porta. “Me pergunto: o que mudou desde a campanha eleitoral [de 2022]? O que mudou foi a chegada de Donald Trump [à Casa Branca], com suas leis xenófobas e a vontade de expulsar sul-americanos, muitos com a cidadania italiana.”

Para o deputado, haverá uma corrida aos tribunais com recursos questionando o texto do decreto, especialmente pelo caráter retroativo. A nova regra afeta mesmo quem nasceu antes da entrada em vigor do texto, em 28 de março, mas que ainda não tinha a cidadania em mãos. “Quem pensava que esse decreto acabaria os negócios ligados à cidadania vai se arrepender, porque agora haverá os negócios de advogados. Muitos vão buscar fazer valer o próprio direito. A lei é retroativa e, portanto, inconstitucional.”