SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Não existem muitas certezas em um mercado tão volátil quanto o financeiro -e o governo Donald Trump está pondo à prova uma das poucas que conseguiram se manter de pé ao longo das últimas décadas.

Desde que assumiu a Casa Branca pela segunda vez, em 20 de janeiro deste ano, os títulos do Tesouro dos Estados Unidos têm titubeado à luz da política tarifária do presidente.

Tradicionalmente, os investidores compram os apelidados “treasuries” como uma espécie de aposta segura. O fundamento por trás é que, aconteça o que acontecer, de guerras a choques econômicos, o governo dos EUA será capaz de honrar suas dívidas.

É o equivalente ao Tesouro Direto, no qual títulos públicos federais são emitidos como forma de financiar parte da máquina do Estado, e o rendimento desses papéis é a remuneração paga pelo governo pelo empréstimo recebido.

Os títulos têm vencimentos variados. O mais monitorado é o de dez anos, considerado um indicador da confiança dos investidores sobre a economia dos EUA no longo prazo.

Quando Trump anunciou o tarifaço do último 2 de abril, o “dia da libertação”, houve uma venda em massa dos papéis por causa dos temores de uma recessão. O rendimento do de dez anos subiu de pouco menos de 4% para cerca de 4,5%, no que foi a alta mais expressiva em quase 25 anos. O de 30 anos saiu de 4,52% para 4,80%. A rentabilidade é inversamente proporcional aos preços, isto é, os investidores estão pagando menos e exigindo mais retornos para enfim dar o voto de confiança de que a dívida será paga.

Em paralelo, o valor do dólar frente às principais moedas globais se deteriorou. Os índices de Wall Street tombaram, resultando em perdas acumuladas de 11,53% no Nasdaq Composite, 7,8% no S&P 500 e 7,5% no Dow Jones nos primeiros cem dias de governo Trump.

Os movimentos denunciam que parte da confiança depositada nos Estados Unidos está se erodindo e, ainda, que o status de porto seguro global de investimentos está ameaçado.

Na sexta-feira (16), a agência Moody’s rebaixou a nota de crédito dos títulos da dívida dos EUA, que perderam o nível máximo (triplo A, de menor risco), devido a preocupações com o aumento da dívida pública. Quanto maior a percepção de risco, maior a taxa de retorno cobrada pelos investidores, o que explica a alta de juros desses títulos após o anúncio. Pela primeira vez na história, o país não mantém a nota máxima em nenhuma das três principais agências de classificação de risco.

“É como se os investidores estivessem vendo os Estados Unidos, a economia mais forte e robusta do mundo, como um mercado emergente. Nos últimos 25 anos, se buscou muito os títulos americanos com a narrativa de que eram os mais seguros. E essa mudança na política americana pode levar a uma diversificação de lugares para se colocar o dinheiro”, diz Lourenço Neto, economista e diretor de operações na Miura Investimentos.

O efeito no mercado de títulos, segundo a maioria dos analistas, foi o que fez Trump recuar de sua cruzada tarifária. Em tese, equacionar a dívida pública americana é a principal razão por trás das medidas, que elevariam a arrecadação do Estado. No entanto, se o investidor cobra mais para financiar essa dívida, ela fica mais cara para o governo.

Trump não chegou a admitir publicamente, mas disse ter achado “que o pessoal [os investidores] estava passando um pouco dos limites”. Na sequência, anunciou uma trégua de 90 dias para a maioria dos parceiros comerciais aos quais tinha imposto “tarifas recíprocas” e estabeleceu um piso básico de 10% sobre todas as importações.

“Os treasuries seguraram ele. Mas não sei até que ponto é um recuo substancial. Diria que ele estava blefando e piscou”, diz André Perfeito, economista-chefe e sócio da consultoria APCE (Associação Brasileira de Produtos Controlados).

Os títulos de dez anos ensaiaram uma recuperação conforme o presidente “piscava”. No início deste mês, o movimento foi mais acentuado depois que os EUA e a China sinalizaram a possibilidade de uma trégua para cessar a guerra tarifária, oficializada no dia 12.

Ficou acertado que, durante 90 dias, os EUA reduzirão de 145% para 30% as tarifas adicionais sobre produtos chineses, enquanto a China diminuirá as taxas para 10%, ante os 125% de hoje. O resultado foi uma melhora nos ativos norte-americanos. O dólar voltou a subir globalmente, embora ainda aquém dos níveis anteriores à posse de Trump, e os índices de Wall Street seguiram o mesmo caminho.

Mas a incerteza persiste. “Não vejo como uma solução duradoura. O que aconteceu foi uma corrida contra o tempo para evitar que a economia global desligasse antes do meio do ano. Vejo esse acordo apenas como uma tentativa bastante desesperada para limpar a barra de Trump, que blefou alto na guerra tarifária e agora precisa ganhar tempo”, diz Perfeito.

E, na visão do economista, há ainda outro problema que precisa ser equacionado: a força do dólar. Uma moeda mais fraca impulsionaria exportações, o que ajudaria a balancear o “insustentável” déficit público dos Estados Unidos. “Se as tarifas são de 30% e o dólar sobe 30%, ficou no zero a zero e o problema não foi resolvido”, afirma.

A principal moeda do mundo tem perdido força em resposta ao comportamento errático de Trump. “Talvez minar a credibilidade do presidente dos EUA seja o instrumento necessário para desvalorizar o dólar. Se for intencional, é uma jogada de mestre, mas duvido que seja o caso.”

No meio acadêmico, a tese de declínio da hegemonia do dólar tem ganhado força. Professor de Harvard e ex-economista-chefe do FMI (Fundo Monetário Nacional), Kenneth Rogoff afirma que há em curso um processo estrutural de enfraquecimento da moeda desde antes da posse de Trump. Com a volta do republicano à Casa Branca, o processo pode ter sido acelerado.

“Embora o dólar quase certamente continue sendo a moeda dominante do mundo por pelo menos mais algumas décadas, é provável que ele caia alguns degraus. Espere que o iene e o euro ganhem espaço na economia legal, e as criptomoedas farão o mesmo na economia subterrânea”, escreveu ele em artigo para a The Economist, no início deste mês.

Enquanto os rumos da economia global -e dos ativos norte-americanos- seguem indefinidos, há ao menos um consenso entre os especialistas: a postura errática de Trump inspira incerteza nos operadores.

“Construir reputação é difícil; destruir é facinho. Um pedaço dessa reputação não vai ser de fácil retorno, mas não acho que políticas pouco cuidadas de um presidente poderão corroer toda a solidez de uma economia como a americana”, diz Danilo Igliori, economista-chefe da Nomad.

“Acredito que a credibilidade e a segurança dos ativos estão, sim, um pouco balançadas. Mas a extensão e a magnitude disso são outros fatores de incerteza nessa história.”