SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Intervenções das gestões do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) e do prefeito Ricardo Nunes (MDB) em uma área de 1 km² da capital paulista em um intervalo de apenas três semanas indicam um momento arriscado e crucial da estratégia conjunta dos mandatários para requalificação de áreas degradadas da região central da capital paulista.

Desde o início da remoção da favela do Moinho, no último 22 de abril, os paulistanos também acompanharam a construção de um bolsão de estacionamento sob o elevado Presidente João Goulart -área abaixo do chamado Minhocão há meses ocupada por pessoas em situação de rua- e testemunharam o desaparecimento da concentração de dependentes químicos na cracolândia da rua dos Protestantes.

Eventos entrelaçados na forma como as gestões enxergam a solução para tornar o centro atrativo para novos moradores e empreendedores. Ambas falam em estrangular a distribuição do crack e dispersar usuários, tornando o acesso à droga difícil ao ponto levar usuários a aceitarem tratamento.

O choque aplicado no centro de São Paulo traz consigo o risco de forçar pessoas pobres e marginalizadas a se deslocarem para outras áreas. É o tipo de ação que, ao menos na avaliação da parcela progressista da população, tende a ser associada a práticas discriminatórias cujo pano de fundo é uma intencional valorização imobiliária.

Não é o que está acontecendo desta vez em São Paulo, afirma o vice-prefeito Ricardo Mello Araújo (PL). As ações adotadas para atingir o tráfico, diz ele, são também amparadas por assistência social, econômica e médica para a população em situação de rua, moradores de habitações precárias, dependentes químicos e suas famílias.

Coronel da Polícia Militar e ex-comandante da Rota, Araújo diz estar à frente de dois dos três acontecimentos recentes no centro. Foi dele a ideia de abrir vagas para carros sob o Minhocão. Ele também diz ter dado a sugestão que fez secar o abastecimento de crack na rua dos Protestantes: a criação de um perímetro vigiado dia e noite por policiais militares e municipais acompanhados de cães farejadores.

“Tem gente que fala que é higienismo. Não é. Sabe por quê? Por que nós estamos diariamente conversando com essas pessoas, com suas famílias. Estamos aprimorando o atendimento, testando formas de convencê-los a aceitar a internação voluntária”, argumenta o vice-prefeito.

Do ponto de vista da adesão ao tratamento e reinserção social, a abordagem do poder público fica mais fácil com os usuários dispersos, diz Laura Müller Machado, coordenadora do Núcleo de Estudo de Pessoas em Situação de Rua do Insper. “Mas isso depende do serviço [de assistência social] efetivamente abordar esses grupos esparsos”, comenta a pesquisadora, que é colunista da Folha.

No centro do triângulo formado por Minhocão, Moinho e cracolândia está a futura sede administrativa do governo de São Paulo. O projeto R$ 3,9 bilhões prevê demolições de quarteirões no entorno do parque Princesa Isabel para a construção de torres de escritórios, galerias de lojas e um auditório. A ideia é que a futura esplanada seja o chamariz de investimentos para a região.

Paralelamente, a gestão Tarcísio desenha uma parceria público-privada de R$ 2,4 bilhões para a construção de 720 mil m² de moradias e infraestrutura urbana.

À frente do projeto estadual de requalificação do centro, o secretário de Desenvolvimento Urbano e Habitação, Marcelo Branco, afirma haver relação direta entre o início da desocupação do Moinho e o esvaziamento da cracolândia.

Baseado em informações da investigação do Gaeco (Grupo de Combate ao Crime Organizado) do Ministério Público de São Paulo, Branco diz que a maior parte da droga que chega à cracolândia sai do Moinho.

O argumento sobre a existência de um sistema econômico que viabiliza a cracolândia, envolvendo ferros velhos onde usuários vendem sucata e hospedagens precárias, entre outros, ganhou força dentro da gestão Tarcísio após a megaoperação realizada na comunidade em agosto do ano passado.

Foi a partir da ação policial que funcionários da CDHU, a companhia estadual de habitação, passaram a cadastrar as cerca de 800 famílias residentes com o intuito de realizar o reassentamento, que agora conta com apoio da União, dona do terreno.

Lideranças da comunidade alegam que a operação buscava criminalizar moradores para facilitar a remoção.

Diferentemente do vice-prefeito, o secretário não inclui a obra no Minhocão como parte da estratégia do estado para o centro. “A ação no Minhocão é exclusivamente municipal”, diz Branco. Ele afirma compreender, porém, que o cenário de pessoas em condições degradantes torna o centro menos atrativo a novos moradores.

Professor do departamento de arquitetura do Instituto Federal de Tecnologia de Zurique, na Suíça, o urbanista Fernando Túlio diz que o combate às cenas abertas por meio da ação policial repete erros cometidos ao redor do globo, incluindo na cidade em que ele leciona.

Zurique era conhecida pelo uso de heroína a céu aberto nos anos 1990 e só resolveu a questão ao adotar estratégias de prevenção, redução de danos (uso controlado da droga) e tratamento. O pacote incluía geração de emprego e moradia.

“São Paulo testou algo parecido, mas a política foi descontinuada. Talvez fosse o caso de estudarem melhor esses exemplos internacionais”, diz Túlio, que foi secretário-adjunto de Desenvolvimento Urbano na gestão do ex-prefeito Fernando Haddad (PT), entre 2013 e 2016.

A administração municipal petista é, no entanto, frequentemente criticada por não ter conseguido acabar com a cracolândia.

Reorganizar o centro da cidade a partir da lógica de dispersão de dependentes químicos traz um risco que vai além do acirramento dos conflitos locais: o espraiamento das cenas abertas de uso de drogas para outros territórios, diz Pablo Almada, do Núcleo de Estudos de Violência da USP.

O PCC, facção criminosa que comanda o tráfico no estado, tem facilidade para criar outros pontos de distribuição, diz o pesquisador. “É uma política com pontos fracos porque cria fluxos descentralizados de usuários, algo que está escalando na cidade.”