BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – Vencedor do prêmio Nobel de Economia em 2014, Jean Tirole vê o protecionismo resgatado pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, como uma catástrofe para a economia global. Em entrevista à Folha, destaca o impacto sobre a inflação e um custo indireto da guerra comercial: a criação de monopólios em um cenário de menor concorrência dentro dos países.

“É preciso voltar a um multilateralismo. Não se deve ceder à chantagem. Se a Europa impuser tarifas aduaneiras compensatórias para se vingar de Trump, são os consumidores europeus que vão sofrer, numa época em que querem ter mais poder de compra”, afirma.

Para lidar com essa nova conjuntura, o economista francês defende maior eficiência nos gastos públicos e coloca o investimento no futuro como prioridade, deixando o consumo de lado. Isso, segundo ele, significa priorizar áreas como educação, clima, pesquisa e desenvolvimento –temas cruciais para a sociedade no longo prazo.

A educação também é apontada por Tirole como uma das formas de salvar a democracia na era digital, ambiente marcado por desinformação e circulação de discurso de ódio. Na visão dele, a regulação das plataformas digitais tornou-se primordial para todas as nações.

“Pensávamos que, com a Primavera Árabe, a democracia seria fortalecida graças à inteligência artificial, às redes sociais e, na verdade, não é isso que está acontecendo. Os governos populistas e totalitários aprenderam a usar essas ferramentas e, agora, utilizam-nas de forma bastante eficaz”, diz.

Um dos economistas mais influentes da atualidade diz não ser “competente o suficiente” para fazer julgamentos sobre questões domésticas quando visita um país. No Brasil, onde deu palestras no Banco Central e no Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) para autoridades, especialistas e estudantes, não foi diferente.

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*Folha – Por que a Europa adotou um caminho diferente dos Estados Unidos na regulação das big techs?*

*Jean Tirole -* Os Estados Unidos são mais adeptos ao laissez-faire [expressão que simboliza o liberalismo econômico]. Ainda assim, é o país que mais desenvolveu o direito concorrencial há muito tempo. Na internet, isso começou em 1996 com a Seção 230, que diz que as plataformas podem fazer o que quiserem, inclusive não serem responsáveis por produtos que vendem ou conteúdos. Isso significa que a Amazon não é responsável por produtos de terceiros que vende em sua plataforma. Facebook, Google ou TikTok não serão, a priori, responsáveis pelos conteúdos, mesmo em caso de discursos de ódio e racismo.

A Europa assumiu um pouco o bastão e tem razão em dizer que é preciso ter cuidado, é necessário que as plataformas sejam responsáveis pelo que fazem. A questão é como impor isso. Não há uma resposta clara. Não queremos impedir o avanço da inovação, não queremos também que os governos se envolvam demais.

Na França, temos uma instituição independente. De forma geral, regulamos mais os meios de comunicação. Temos uma abordagem na Europa mais intervencionista. No caso do direito da concorrência, é importante que tenhamos diretrizes para dar à indústria restrições, que, ao mesmo tempo, não matem a inovação. É como andar na corda-bamba, precisamos ter cuidado para não cair para um lado ou para o outro.

*Folha – Quais são as primeiras avaliações até agora da Lei de Serviços Digitais (DSA, na sigla em inglês) na Europa?*

*Jean Tirole -* Não vamos resolver tudo pela regulação, porque haverá migração para outras plataformas. Por exemplo, se impedirmos as pessoas que seguem populistas de ouvir o que querem, elas vão migrar para plataformas ainda mais conspiratórias. Não é atacando TikTok e Facebook que vamos resolver o problema. Somente salvaremos a democracia pela educação e pelo respeito à ciência. Mas isso leva muito tempo para se desenvolver.

Precisamos também de mídias e de políticos sérios. Vemos muitos políticos surfando em teorias de conspiração. O caso das vacinas é um típico exemplo. Precisamos ter políticos que sejam corajosos para denunciar certas coisas. Os partidos moderados, sensatos, que respeitam a ciência, precisam ser solidários entre si.

Pensávamos que, com a Primavera Árabe, a democracia seria fortalecida graças à inteligência artificial, às redes sociais e, na verdade, não é isso que está acontecendo. Os governos populistas e totalitários aprenderam a usar essas ferramentas e, agora, utilizam-nas de forma bastante eficaz.

*Folha – No Brasil, discute-se a regulação das big techs pelo prisma concorrencial, e o projeto envolvendo conteúdo está travado. É preciso ter uma regulamentação mais ampla?*

*Jean Tirole -* Precisamos da regulamentação dos conteúdos, mas é preciso regular não apenas duas ou três plataformas, mas regular as outras também. É preciso estabelecer gatekeepers [responsáveis pela filtragem] públicos, mas não necessariamente o governo, que tem interesse político e isso pode prejudicar a democracia. São necessárias instituições independentes e competentes.

*Folha – Qual é o papel da Europa diante da ascensão dos EUA e da China em setores estratégicos, como IA?*

*Jean Tirole -* Precisamos ter nossos próprios sistemas de IA. O exemplo chinês DeepSeek pode ser uma boa notícia de que talvez possamos fazer isso sem orçamentos gigantescos. Qualquer GAFA [Google, Amazon, Facebook e Apple] gasta US$ 40 bilhões por ano em pesquisa e desenvolvimento, não apenas [em setores] disruptivos. O orçamento de pesquisa em nível federal europeu é de 11 bilhões de euros para todas as indústrias.

Precisamos competir, não pela quantia gasta, mas sendo inteligentes. Primeiro, ter nichos de produtos nos quais seremos muito bons, como a ASML, da Holanda, na litografia de chips [fornecedora mundial de equipamentos para fabricação de chips]. Dessa forma, não precisamos de todo o ecossistema. Não vamos nos sair bem apenas com regulação. Se não tivermos grandes startups no nível europeu, não conseguiremos competir na criação de valor. Não conseguiremos nos defender. Isso está se tornando perigoso, não estamos mais sob o escudo americano. Torna-se uma questão primordial ser inovador.

*Folha – No Brasil, a lei em discussão no Congresso prevê uma remuneração dos direitos autorais em caso de utilização de conteúdos no treinamento de IA. Como vê isso?*

*Jean Tirole -* Ainda não temos a resposta. Se não remunerarmos conteúdo de qualidade, vai ter cada vez mais jornalismo de baixo escalão. Por exemplo, jornais como o seu [Folha], The Economist, Financial Times, The New York Times não gastarão mais em jornalismo de qualidade. Já temos uma tendência nessa direção, porque os jornais perderam parte da publicidade.

Os instrumentos que temos atualmente não funcionam. Temos uma proteção pelo direito autoral, o copyright, que não é aplicável na época da IA, porque os conteúdos reproduzidos nunca são exatamente os mesmos. O ideal seria haver acordos. Ter uma IA de qualidade que seja alimentada por um certo número de jornais de qualidade que vendem seus conteúdos para essas plataformas, isso seria muito bom.

O problema é quando o conteúdo é utilizado gratuitamente. A própria IA vai roubar conteúdos. A DeepSeek foi acusada de pegar conteúdos de outras plataformas de IA que, elas mesmas, pegaram conteúdos de outros lugares. A questão é: onde está a criação de valor? Temos uma situação em que a criação de valor pode ser feita também por juntar pequenos pedaços de conteúdo e melhorar o resultado. Nem os economistas nem os juristas realmente encontraram a solução para isso.

*Folha – E no caso de IA especializada?*

*Jean Tirole -* A IA desempenha um papel cada vez mais importante na área de biotecnologia, por exemplo, pode ser muito útil para escolher medicamentos, fazer triagem. Mas, para isso, é preciso ter dados de hospitais. Quem vai fornecer esses dados? Há países onde não há compartilhamento de dados, em particular porque não temos um sistema de remuneração. Não chegamos preparados a esta nova época da inteligência artificial.

Outra possibilidade é ter uma plataforma pública, onde dados de diferentes hospitais sejam livremente utilizados. Mas isso também causa problemas porque não temos uma regulação mundial. Ou seja, os europeus podem colocar online todos os dados dos hospitais, mas não teremos os dados dos hospitais americanos e do Google. É assimétrico.

Seria necessário ter um acesso condicionado à reciprocidade, mas reciprocidade de quê? Qual é o valor dos dados do Google? Sem dúvida, é muito grande, mas não sabemos. Chegamos novamente a um problema de plataforma, de monopólio natural. Uma plataforma que tem todos os dados vai dominar o mercado.

*Folha – Qual é o impacto das medidas protecionistas de Donald Trump sobre a economia mundial?*

*Jean Tirole -* É preciso entender os limites do livre-comércio, mas protecionismo é ruim. Cria inflação, primeiro, porque vamos pagar mais caro por produtos estrangeiros. As primeiras vítimas de Trump serão os americanos porque boa parte dos impostos será paga por eles. Mas há outro custo mais discreto, que é a criação de monopólios dentro dos países, já que as empresas domésticas são protegidas pelas tarifas aduaneiras, isso significa que há muito menos concorrência. O protecionismo é muito perigoso.

Além disso, é muito egoísta, porque tentamos tomar participação de mercado de outros países. É por isso que temos a OMC [Organização Mundial do Comércio]. Mas sabemos que a OMC não funciona muito bem, especialmente porque Trump não quer ouvir falar dela. O protecionismo é uma catástrofe.

A ordem econômica e a ordem política e geopolítica mundial estão sendo questionadas. Isso é muito grave porque estamos em um mundo muito interdependente do ponto de vista econômico, político e climático. É preciso voltar a um multilateralismo. Não se deve ceder à chantagem. Se a Europa impuser tarifas aduaneiras compensatórias para se vingar de Trump, são os consumidores europeus que vão sofrer, numa época em que querem ter mais poder de compra.

*Folha – Viveremos em um mundo com mais inflação, além de alto endividamento público?*

*Jean Tirole -* Essa inflação será custosa para os consumidores de todos os países. O que podemos fazer? Hoje precisamos investir em tecnologia e contra o aquecimento global, precisamos continuar investindo em saúde e educação. Precisamos investir em defesa, infelizmente, já que temos regimes autocráticos que são ameaçadores. Estamos em um momento em que precisamos gastar muito e não temos mais margem de manobra porque gastamos demais no passado. Estamos em uma situação bastante delicada. Então, precisaremos ser muito mais eficientes nos gastos, investir no futuro em vez de investir no consumo.

Isso só irá funcionar se os cidadãos do país reagirem e disserem que querem investir no futuro. Hoje eles dizem que querem gastar mais. Isso é muito ruim e tornará a democracia muito difícil de administrar, fortalecerá ainda mais as teses dos populistas, que são muito perigosos. Hoje eles não chegam pela força, chegam pelas eleições. Vemos isso na Rússia, na Turquia, na Índia. Houve um pouco disso também aqui no Brasil. Mas não quero de forma alguma entrar na política do Brasil.

*Folha – O que quer dizer com “investir no futuro”?*

*Jean Tirole -* Investir em produtividade, em pesquisa e desenvolvimento, na luta contra o aquecimento global. Na Europa, desinvestimos em defesa. Isso fazia sentido, porque tínhamos os americanos nos apoiando. Mas, hoje, é mais complicado. Investir em educação. Mas não há concordância entre o tempo político e o tempo do que eu chamo de bombas-relógio. São coisas que não têm grande interesse a curto prazo e são cruciais a longo prazo. Por isso ainda não resolvemos a questão climática. Sempre podemos esperar mais um ano, mas já faz 30 anos que estamos esperando.

*Folha – Como equilibrar a necessidade de maiores gastos do governo no cenário atual e a disciplina fiscal?*

*Jean Tirole -* Pensamos em instituições independentes para controlar os orçamentos. Na França, temos déficit entre 5% e 6% do PIB e não investimos o suficiente no futuro. Talvez existam boas razões para questionar um pouco o freio orçamentário hoje. É preciso distinguir entre o que é investimento e o que é consumo, um período difícil de um período próspero. É muito mais sutil. Deveria haver uma instituição independente que mostrasse claramente aos cidadãos que estamos indo para um beco sem saída. Isso é muito difícil de fazer.

Eu defendi muito as instituições independentes, com pessoas competentes e sem conflito de interesse. Eu estive no Banco Central e no Cade. São duas áreas, por exemplo, que foram muito aperfeiçoadas quando criamos instituições independentes, que permitem evitar situações como criar inflação ou fornecer liquidez à economia porque haverá eleições. Quando chegamos ao nível dos orçamentos, as pessoas são contra, em parte porque não têm educação econômica e não percebem que os políticos têm motivações.

Não os culpo completamente. Em uma democracia, eles querem ser reeleitos e vão fazer o que é popular. Mas isso não é necessariamente do interesse do país. O longo prazo é negligenciado. Seria necessário também conseguir educar os cidadãos para entender que não se deve atacar os políticos. É perigoso para a democracia. Temos um sistema que é o que é. O melhor ainda é a democracia, mas ela não é perfeita.

*RAIO-X*

JEAN TIROLE, 71

É presidente honorário da Escola de Economia de Toulouse, na França, e membro fundador do IAST (Instituto de Estudos Avançados em Toulouse). Recebeu o prêmio Nobel de Economia em 2014 por seu trabalho sobre o poder do mercado e sua regulação. É graduado em engenharia na Escola Politécnica, na França, e PhD em economia no MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts), nos Estados Unidos.