SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – No fim de 2024, o cofundador da fabricante de eVtols (popularmente chamados de carros voadores) alemã Lilium, Patrick Nathen, foi ao LinkedIn dizer que, depois de mais de dez anos de operação, a companhia estava encerrando as atividades. Nem mesmo a aquisição de ativos de subsidiárias da fabricante -o que Nathen chamou de “milagre de Natal antecipado”- por um consórcio de investidores, anunciada em dezembro, foi capaz de impulsionar a empresa novamente.
“Tenho dificuldade de colocar em palavras o que aconteceu nos últimos meses. A empolgação, a energia e o espírito incrível que nos impulsionaram em janeiro –após o que pareceu ser “o milagre de Natal”, em dezembro– agora foram destruídos”, escreveu em uma publicação mais recente, há dois meses, no LinkedIn. “A equipe com a qual tive o privilégio de trabalhar ao longo da última década é formada por pessoas verdadeiramente notáveis. Vê-las deixar a sede da Lilium pela última vez é devastador”, completou.
O caso não é isolado, e a frustração de Nathen passou a ser compartilhada por representantes do setor ao passo que algumas fabricantes paralisaram investimentos em seus projetos de eVtols. Agora, paira sobre parte do segmento a incerteza sobre o futuro dos carros voadores -que são uma das apostas da indústria de aviação para a redução das emissões de carbono.
A Azul, por exemplo, já havia fechado uma parceria para operar com os eVtols da Lilium quando entrassem em operação no Brasil. Procurada pela reportagem, a companhia aérea disse que não divulga detalhes sobre as condições dos contratos firmados.
“A Azul segue acompanhando o desenvolvimento e a regulação de aeronaves eVtol em todo o mundo para avaliar parcerias que agreguem ao seu modelo de negócios”, escreveu a empresa em nota.
Outro projeto paralisado é o CityAirbus NextGen, protótipo de eVtol da maior fabricante de aviões do mundo, a Airbus. À Folha o presidente da Airbus para América Latina, Arturo Barreira, disse que, por ora, os planos para a aeronave estão em espera.
“Estamos em um momento em que estamos meio que pausando parte dos investimentos. Estamos dispostos a acompanhar alguns desenvolvimentos futuros, mas a situação atual é que estamos colocando isso em espera, por enquanto”, afirmou à reportagem.
Segundo Barreira, há elementos que podem ser extraídos do protótipo e aplicados em outros projetos. “Estamos testando a tecnologia, porque ela faz parte do nosso ‘know-how’.”
Já a empresa alemã Volocopter, que também está desenvolvendo um eVtol próprio, anunciou em março que foi integrada à Diamond Aircraft Group Áustria, subsidiária da Wanfeng Aircraft Division, pertencente à fabricante de peças chinesa Wanfeng Auto Holding Group.
“A reorganização da Volocopter pela empresa ampliará seu portfólio de aeronaves e negócios para o campo do transporte aéreo urbano elétrico, ao mesmo tempo em que permitirá à Volocopter reduzir custos, manter uma força de trabalho altamente motivada e qualificada e concentrar-se no cumprimento de suas metas de certificação até 2025”, escreveu a fabricante de eVtols em um comunicado divulgado em seu site.
Paul Malicki, CEO da companhia de táxi aéreo Flapper, diz que muitos fabricantes se aproveitaram de um boom do segmento de venture capital (capital de risco), que inclui investidores de startups, para levantar capital há alguns anos. Hoje, com um cenário mais adverso, o desafio das companhias é encontrar mais recursos para o processo de certificação das aeronaves.
Ele explica que, por ser uma tecnologia nova e inovadora, a certificação exige muitos testes e ajustes na aeronave, o que demanda mais investimentos, diz.
“Isso custa dinheiro, porque você vai testar uma coisa; depois, na segunda [vez], você vai testar a aeronave em condições visuais noturnas. E, enquanto isso, não pode voar. A aeronave segue não sendo utilizada. E você vai começar a fazer ajustes até que a aeronave esteja em conformidade com requerimentos do órgão regulador. Ninguém sabe ainda exatamente aonde vamos chegar.”
Segundo Malicki, a Flapper já fechou seis acordos, de fabricantes diferentes, para aquisição de aeronaves que se encaixam no conceito de AAM (advanced air mobility, ou mobilidade aérea avançada), que inclui os eVtols. Só da Eve, fabricante brasileira controlada pela Embraer, a companhia receberá 25 eVtols.
“No final das contas, de mais de 600 projetos que foram lançados no setor de eVtol, nós vamos ver no máximo cinco chegando na base de comercialização e lançamento dos voos.”
Na visão de Emerson Granemann, CEO da MundoGEO, que organiza anualmente em São Paulo a Expo eVTOL, feira do segmento, a falta de planejamento financeiro sólido e adaptabilidade às mudanças técnicas e regulatórias podem levar a desafios significativos para as startups nesse setor.
“É importante destacar que a indústria de eVtols está em uma fase de consolidação e apenas as empresas mais sólidas financeiramente podem sobreviver. A tendência é que acabem ficando poucos players, assim como a aviação, que tem poucas empresas globais”, afirma.
Na opinião de André Castellini, cofundador da consultoria Bain & Company, a vantagem da Eve sobre outras fabricantes de eVtols está relacionada à boa reputação e à capacidade de inovação da Embraer. Segundo ele, a Eve pode aproveitar a base diversificada de clientes da fabricante de aviões.
“A Embraer é uma das empresas aeroespaciais que têm uma capacidade de inovação muito boa se comparada às empresas grandes, como a Boeing e a Airbus. Eles [a Embraer] têm os E-Jets, um dos poucos projetos recentes da aviação comercial que foram desenvolvidos dentro do prazo e no orçamento”, afirma.
Segundo levantamento da SMG, consultoria voltada para as indústrias aeroespacial, de defesa e de tecnologia limpa, a Eve é a fabricante de eVtols com mais encomendas -são 2.900, no total.
À reportagem a Eve disse que o primeiro voo de seu eVtol está previsto para o meio deste ano. A empresa afirma estar conduzindo testes em solo nas instalações da Embraer em Gavião Peixoto (SP).
“A Eve tem trabalhado com a Anac (Agência Nacional de Aviação Civil) na definição dos meios de cumprimento, para prosseguir com a realização de testes, análises e simulações necessários para obtenção do certificado de tipo. A expectativa é obter a certificação pela Anac, realizar as primeiras entregas e iniciar a entrada em serviço em 2027”, escreveu a empresa em nota à Folha.
Paralelamente, a Eve está em tratativa com outras autoridades, como a FAA, órgão regulador do setor nos Estados Unidos, para obter certificação internacional.
A Eve planeja construir cinco protótipos que deverão ser utilizados na campanha de certificação da aeronave.
A companhia brasileira está em sétimo lugar, de um total de 26 posições, no ranking AAM Reality Index (ARI), também da SMG. O índice calcula o progresso das fabricantes para a entrega de um produto certificado e com produção em larga escala. Quanto maior for a colocação, mais próximo a empresa está de atingir esse objetivo.
A chinesa EHang ocupa o primeiro lugar da lista. Com seus modelos EHang 216-S, para transporte de passageiros, e EHang 216-F, para combate a incêndios, a companhia já conseguiu certificação na China e vem apresentando os carros voadores em feiras do setor no Brasil. A Folha acompanhou o primeiro voo do eVtol chinês em solo brasileiro em setembro de 2024.