(FOLHAPRESS) – A primeira vantagem de “Animale” é trazer ao cinema uma paisagem rara -no sul da França, a região perto de Arles, onde se criam os touros de Camarga e acontece um tipo de tourada original em relação ao que conhecemos. Ali, os toureiros são homens cuja habilidade consiste em provocar os touros e correr para se esconder além da cerca rapidamente.

Nesse lugar tipicamente masculino se introduz a jovem Nejma, ela mesma filha de um toureiro já morto e disposta a tornar-se uma. Nessas corridas, diga-se, os touros não morrem. Cabe ao toureiro apenas marcar o animal com um instrumento que leva em sua mão. Ao contrário, os toureiros gostam dos touros. Nejma entre eles. Até mais que eles.

Esse é o princípio, mas não a essência do filme. “Animale” se funda no encontro entre touros e vaqueiros. Não os vemos como opostos, e sim complementares. Nejma tem bastante proximidade com Trovão, um animal desprezado pelo pessoal do rancho por causa de seus olhos estranhamente vazios.

São esses olhos que levarão o filme à transição essencial, quando passa da aventura ao fantástico. Acontece -ou começa a acontecer- quando Nejma faz sua estreia como toureira. Como de hábito, ela foge do touro e se refugia num muro além da cerca de madeira da arena. Ocorre que Trovão atravessa a cerca de madeira e se machuca. Na ação, alguns pingos de sangue jorram do animal e caem na roupa branca da moça.

É quando começamos a perceber como é agradável o ritmo que Emma Benestan imprime a seu filme -ele é suave, nunca molenga. Dá tempo ao espectador de observar a paisagem inédita e de acompanhar uma ação que poderia remeter a um bom faroeste. O contato com os touros se anuncia fértil, mas não isento de perigos. Eles “te dão tudo e te tiram tudo”, diz o patrão do grupo, traduzindo toda a ambiguidade do filme quanto à relação do homem com a natureza.

É quando começa também a se manifestar o espírito do filme. Como no clássico “Sangue de Pantera”, de Jacques Tourneur, estabelece-se a completa identidade entre a mulher e o animal. Em “Sangue de Pantera”, quem conhece lembra, a mulher não podia fazer amor; caso fizesse, estraçalharia o homem. Ela trazia essa dualidade em si desde o início, e Nejma também. Com isso, o que era uma afinidade com Trovão se transforma em identidade profunda.

E que pode ela fazer quando algumas mortes começam a acontecer em que colegas do rancho aparecem estripadas por touros? Isso agita toda a comunidade local. Mortes por animais só servem para afastar turistas. Que fazer? Esconder o caso, como em “Tubarão”, ou divulgá-lo? Talvez promover uma grande caçada aos animais que se movimentem à noite?

A decisão implica reconhecer que agora existe uma oposição entre homens e touros. E Nejma, onde pode ficar? Ela que agora é parte mulher, parte animal, que tem uma percepção da paisagem e do mundo diferente daquela dos homens que a cercam.

Esses enigmas levam o filme de Emma Benestan, inevitavelmente, a uma chave feminista. E, como o filme é levado com firmeza, no caso trata-se de uma ótima chave, pois vai fundo na abordagem de temores e sofrimentos femininos, sem transformá-los numa bolota-espetáculo, como em “A Substância”.

“Animale” é ao mesmo tempo mais introspectivo e mais inteligente. Tem a mostrar um mundo tradicional (rural) pouco conhecido e que no entanto continua a existir, ao menos quando o filme o observa. Sabe buscar também a tradição cinematográfica e ao mesmo tempo inovar dentro dela. Introduz no espetáculo uma ideia, em vez de transformar uma ideia feita em espetáculo. No mais, aqui dirige com segurança Oualya Amamra, muito bem como Nejma.

Em resumo, novamente são os descendentes das ex-colônias que parecem mais ter algo a dizer no cinema francês.

ANIMALE

Onde Nos cinemas

Elenco Oulaya Amamra, Vivien Rodriguez, Damien Rebattel

Produção França, 2024

Direção Emma Benestan