SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Logo antes de morrer, o cineasta Cacá Diegues enviou uma carta ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) expressando “profunda preocupação” com os rumos da política para o setor do audiovisual, “que enfrenta um preocupante processo de desindustrialização”.
“A política cultural de seus mandatos anteriores foi um sucesso”, escreveu Diegues a Lula. “Hoje, vivemos um retrocesso.”
A Folha teve acesso à carta que é datada de 16 de janeiro, ou seja, menos de um mês antes da morte do cineasta. O texto é assinado não só por Cacá Diegues, mas por uma série de nomes de grande importância no setor audiovisual brasileiro, mas que pediram anonimato. Segundo um dos nomes que assina a carta, não houve resposta por parte de Lula.
Um tema central em discussão no setor cultural brasileiro hoje é a regulamentação e taxação do streaming.
“Sem constância de conteúdo brasileiro nas nossas telas, o público será cada vez mais afastado de sua própria cultura”, segue a carta.
De acordo com a carta de Diegues, o Brasil vive “uma extrema contradição”. Se por um lado há atualmente recursos significativos no Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), sobretudo com o advento das leis Paulo Gustavo e Aldir Blanc, “a falta de planejamento estratégico” na aplicação do dinheiro está comprometendo os resultados, “sendo alocados em ações fragmentadas e não estruturantes”, diz a carta.
A carta fala ainda que o diálogo com o Ministério da Cultura da gestão Lula é inexistente. “Com respeito e admiração, colocamo-nos à vossa disposição para que juntos possamos estabelecer um diálogo, hoje inexistente, na retomada de um Audiovisual compatível com o projeto de uma nação soberana!”
“Senhor Presidente, a exclusão do setor audiovisual do programa Nova Indústria Brasil (NIB) causa-nos profunda preocupação”, segue a carta.
O NIB é um programa de estímulo à indústria que foi anunciado em janeiro do ano passado. Na época, foram previstos até 2026 R$ 300 bilhões para o setor industrial, que há décadas patina no Brasil. O governo diz que a maior parte dos recursos virá de financiamentos do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social).
“Em seus governos [Lula] anteriores avançamos com a criação do Fundo Setorial do Audiovisual e da Lei da TV Paga; [audiovisual brasileiro] ocupávamos 25% do mercado. Hoje mal conseguimos atingir os 5%, garantindo mais espaço para a invasão do filme norte-americano.”
De acordo com dados da plataforma Database Brasil, do Filme B, as bilheterias de 2003 tiveram grande participação de obras nacionais. 22,1%
Naquele ano, ainda na ressaca do sucesso de “Cidade de Deus”, tivemos “Carandiru”, de Hector Babenco, “Lisbela e o Prisioneiro”, de Guel Arraes, além de “Os Normais – O Filme”, “Xuxa e os Duendes 2”, “Didi – O Cupido Trapalhão”, “Deus é Brasileiro” e “Maria – Mãe do Filho de Deus”.
“As plataformas de streaming como Netflix, Disney, e todas as outras, operam aqui sem regulação específica, deixando de recolher impostos e tributos expressivos, causando dano aos cofres do país, e com o agravante de oferecer espaço limitado ao conteúdo produzido por nós, brasileiros. Esse quadro paralisa o nosso crescimento”, afirma o texto. “É dever do Estado quebrar a hegemonia da ocupação desordenada do produto estrangeiro em nosso território.”
Cacá Diegues morreu em fevereiro, aos 84 anos. Conhecido por clássicos do cinema brasileiro, como “Bye Bye, Brasil”, de 1979, e obras de vanguarda da filmografia nacional, como “Ganga Zumba”, exibido no Festival de Cannes, na França, em 1964, ele foi um dos expoentes do movimento do cinema novo. Também era um dos imortais da Academia Brasileira de Letras, a ABL, para onde foi eleito em 2018.
As propostas de regulamentação e taxação das plataformas de streaming tentam sair do papel há anos no Brasil, sem sucesso.
Mas o assunto voltou a esquentar em Brasília nos últimos meses, com pelo menos quatro agendas importantes. A ministra da Cultura, Margareth Menezes, e seu secretário-executivo, Márcio Tavares, se reuniram com os parlamentares relatores dos projetos de lei sobre o assunto na Câmara e no Senado. Hoje o projeto que veio do Senado está sob relatório de Jandira Feghalli (PCdoB), na Câmara.
Em meio a isso, Netflix e Amazon têm se aproximado de diferentes áreas do governo federal e participam de mesas de negociação para apoiar projetos variados.
Reformas de salas de cinema, campanhas de promoção do turismo e reformas em equipamentos públicos estão nos planos de algumas plataformas de streaming que atuam no Brasil.
As conversas com órgãos públicos acontecem em meio à discussão da regulamentação do streaming pelo poder público, que visa taxar as plataformas, bem como impor cotas para produções nacionais em seus catálogos e definir o que torna, em essência, uma obra brasileira ou estrangeira.
O aguardado PL de regulamentação do streaming já chegou à Câmara dos Deputados e está de cara nova.
Uma primeira versão do texto substitutivo do projeto de regulamentação das plataformas de streaming já circula entre as redes do setor audiovisual. O PL, que está sendo batizado de Lei Toni Venturi, subiu a alíquota de taxação de 3% para 6% do faturamento bruto das plataformas.