SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Na quarta-feira (14), os deputados estaduais de Goiás aprovaram, em duas votações unânimes, o primeiro marco legal de inteligência artificial do país, após um dia de tramitação. O texto, agora, vai à sanção do governador Ronaldo Caiado (União), que está retornando de Nova York nesta quinta-feira (15).

A proposta, assinada pelo próprio Caiado na terça-feira (13), não cria uma classificação de risco das ferramentas nem um sistema de remuneração de escritores e artistas, como prevê o projeto de lei que tramita no Congresso Nacional desde 2020.

De acordo com o coautor da lei, o secretário-geral do governo do estado, Adriano da Rocha Lima, a iniciativa goiana visa a eliminar “a insegurança jurídica que existe em função” do projeto de lei nº 2338 de 2023. A Amazon, por exemplo, “está segurando investimento no Brasil por causa disso”, disse à reportagem.

De acordo com o secretário, a Constituição prevê o direito de concorrência regulatória entre estados e a União, o que garante a validade da lei goiana.

Advogados consultados dizem que a lei federal pode se impor em questões sensíveis como a obrigatoriedade de pagamento por uso de propriedade intelectual, caso o PL 2338 seja aprovado sem mudanças. “É competência da União, e sobre isso o estado não pode fazer nada”, afirma Ronaldo Lemos, cientista-chefe do ITS-Rio (Instituto Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro).

Para o diretor-fundador da associação Data Privacy Brasil Bruno Bioni, a aprovação de uma lei estadual antes de uma federal ameaça a segurança jurídica, por causa do risco de ações judiciais para resolver a dissonância entre os textos. “Temos que aprender com os episódios das guerras fiscais [nos quais os estados disputam quem oferece a melhor condição tributária para atrair empresas]; é um sinal de que o legislativo federal precisa tratar do tema.”

Em vez de priorizar a prevenção de possíveis danos coletivos gerados pela tecnologia e a responsabilização em caso de inadequação, a legislação goiana elenca direitos dos desenvolvedores, operadores, usuários e não usuários (que também podem ser afetados).

O texto também institui a criação do Núcleo de Ética e Inovação em Inteligência Artificial (NEI-IA), um comitê consultivo e multissetorial que definirá boas práticas para o uso da tecnologia e deverá ser consultado para definir, por exemplo, parâmetros de sustentabilidade.

O texto goiano tomou como base uma consulta pública iniciada por ITS-Rio, Abranet (Associação Brasileira de Internet) e Campus Party no fim de 2023.

De acordo com o secretário-geral de governo de Goiás, o estado entrou na discussão no ano passado e também houve inspiração em experiências internacionais. “Em conversa com o ministro da Pesquisa Científica e Industrial da Índia, ele comentou espontaneamente que a estratégia indiana em inteligência artificial era a da desregulamentação.”

A lei também posiciona Goiás na corrida por investimento em data centers, os galpões de supercomputadores onde os modelos de inteligência artificial são treinados. Um estudo encomendado pelo Ministério da Fazenda estima que o Brasil pode receber até R$ 2 trilhões em investimento no setor de data centers.

Além de propor a criação de incentivos fiscais e creditícios para as companhias do setor de infraestrutura digital, a legislação menciona o uso do biometano para suprir a grande demanda de eletricidade das unidades. Um data center preparado para inteligência artificial pode consumir a mesma energia do que uma cidade com centenas de milhares de habitantes.

Uma das preocupações das empresas de tecnologia é recorrer à energia limpa para atender a metas de sustentabilidade estabelecidas no passado, e o Brasil se destaca nesse quesito porque tem uma matriz elétrica 88% renovável.

Outra vantagem do biometano seria a possibilidade de geração contínua, o que é impossível em usinas eólicas e solares. O gás, obtido de resíduos orgânicos do agronegócio, ainda não tem produção em larga escala. Além disso, a energia de uma termelétrica a biometano também sai mais caro.

Até o momento, os principais projetos de infraestrutura e inteligência artificial ficam nos estados do sul e em São Paulo, regiões abastecidas pela hidrelétrica de Itaipu, apesar de esforços do governo federal para levar investimentos para o nordeste.

A iniciativa goiana pode mudar essa tendência. Segundo Lima, o vice-presidente de políticas públicas da Amazon Web Services, Shannon Kellogg, teria sinalizado, durante encontro em Nova York, que Goiás passou a reunir as duas principais qualidades para receber um projeto da empresa: segurança jurídica e energia limpa.

A rápida tramitação da proposta ainda permitiu que o texto já tratasse de temas recentes, como os agentes autônomos e a inteligência artificial embarcada em carros, câmeras e outros objetos. A regulamentação da tecnologia diminui o risco de que empresas tenham derrotas nas cortes, com base em legislações gerais como a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados) e o Código de Defesa do Consumidor.

O projeto goiano ainda tem como o objetivo a criação de um ambiente de negócios competitivo em tecnologia, com a capacitação em inteligência artificial desde a educação básica.

Também trata da adoção de inteligência artificial pela administração goiana, dando prioridade aos modelos de código aberto, que podem ser usados, editados e auditados pelas pessoas e empresas interessadas.

VEJA PRINCIPAIS PONTOS DA LEI DE FOMENTO À IA DE GOIÁS

– Estabelece fundamentos e princípios para o desenvolvimento da IA no estado

– Determina preferência por soluções tecnológicas desenvolvidas em “software aberto e modelos de IA abertos”

– Define direitos de desenvolvedores, operadores, usuários e não usuários;

– Regulamenta o uso da IA para melhoria dos serviços públicos

– Institui programas específicos de incentivo à IA, como o “IA no Campo – Agro-Tech Aberta Global”

– Cria o Centro Estadual de Computação Aberta e Inteligência Artificial

– Estabelece o “Sandbox Estadual Permanente de Inteligência Artificial”, uma exceção à lei estadual que garante mais flexibilidade regulatória para startups

– Regulamenta agentes autônomos de IA e inteligência artificial embarcada

– Determina políticas de educação e capacitação em IA

– Dispõe sobre sustentabilidade e governança ambiental da infraestrutura de IA