SÃO CARLOS, SP (FOLHAPRESS) – O mais completo estudo já feito sobre o DNA dos brasileiros indica que a população do país carrega uma herança indígena mais substancial do que se imaginava antes e abrange uma grande fatia da diversidade genética humana, incluindo um grande número de variantes que nunca tinham sido identificadas antes.

A massa de dados obtida pela equipe, liderada por pesquisadores da USP, tem uma dimensão que seria quase impensável poucas décadas atrás. Os cientistas obtiveram “leituras” de alta qualidade do genoma completo de 2.723 pessoas de todas as regiões do Brasil, englobando estados que vão do Amazonas ao Rio Grande do Sul (veja abaixo).

A análise mostra que os séculos de miscigenação desde 1500 deixaram marcas profundas no DNA da população atual. “O que me encanta nesse trabalho é vermos as consequências biológicas dos processos de formação da população brasileira que conhecemos dos livros de história”, diz a geneticista Lygia da Veiga Pereira, uma das autoras principais do estudo, publicado nesta quinta-feira (15) na revista especializada Science.

Além disso, as informações têm potencial para trazer impactos positivos para os brasileiros do presente, e mesmo para outras populações mundo afora. Saber quais variantes de genes aparecem no país pode facilitar abordagens de “medicina de precisão”, que envolvem, por exemplo, a escolha de medicamentos e dosagens de acordo com o metabolismo específico do paciente, algo que é influenciado pelo genoma.

E, no caso brasileiro, a miscigenação também significa que o DNA de cada indivíduo também pode ser uma janela para muitos outros grupos espalhados pelo mundo.

“Se pensarmos que a população brasileira é um grande reservatório de variabilidade de diversas populações pouco representadas em estudos genômicos, como indígenas, africanos e europeus do sul, temos resultados que podem ser úteis para diversos grupos”, explica Tábita Hünemeier, que também coordenou o trabalho junto com Pereira. Em outras palavras, o DNA de brasileiros poderia trazer pistas inéditas sobre a genômica das populações de seus ancestrais na África Central ou na península Ibérica, por exemplo.

Confirmando o que diversos estudos anteriores já indicavam, a mistura complexa de populações que deu origem aos brasileiros modernos foi bastante desigual. Calcula-se, por exemplo, que, antes da invasão europeia, havia pelo menos 10 milhões de indígenas no território que abrigaria o Estado brasileiro.

Do século 16 em diante, cerca de 5 milhões de europeus atravessaram o Atlântico rumo ao Brasil, a grande maioria dos quais chegando do século 18 em diante. Um número similar de africanos foi trazido para cá por meio do tráfico de escravizados. Por fim, houve também contribuições minoritárias, mas significativas, de grupos do leste da Ásia (especialmente japoneses) e do Oriente Próximo (sírio-libaneses, que tendem a ficar agrupados junto com os europeus).

Na população atual, porém, quase 60% da herança genética, em média, é europeia, seguida pela contribuição africana (27%) e indígena (13%). Estudos anteriores tinham sugerido que o legado genético ameríndio para a população do país era, em média, inferior a 10%. Segundo os autores da nova pesquisa, o número aumentou graças a uma maior participação do genoma de moradores da região Norte do Brasil na amostragem, já que a área teve maior presença indígena e menos escravizados africanos desde os tempos coloniais.

A assimetria entre os sexos, considerando as diferentes origens de cada população, também é marcante. A predominância europeia é ainda mais clara quando se usa o cromossomo Y, a marca genética da masculinidade, para estimar quais as linhagens paternas dos brasileiros (mais de 70% derivam da Europa), enquanto as linhagens maternas são majoritariamente africanas (42%) e indígenas (35%). Só 2% dos homens brasileiros de hoje têm um ancestral masculino que pertencia aos povos originários. Em suma, homens de origem europeia tinham chances muito maiores de conseguir parceiras de outras origens étnicas e gerar filhos com elas.

É muito difícil explicar esse padrão sem os efeitos da violência sexual durante a colonização, diz Hünemeier.

“Qualquer outro fator é muito pouco provável, pois o cenário é muito discrepante”, analisa ela. Argumentar que as mulheres de origem não europeia simplesmente preferiam ter filhos com homens europeus tampouco é crível. “Além disso, é algo que teria de acontecer em uma escala absurda, na qual praticamente todas as mulheres indígenas prefeririam um homem europeu, considerando que o cromossomo Y indígena praticamente desaparece na população mestiça.”

Apesar das variações regionais –maior contribuição europeia no Sul e Sudeste, maior proporção de DNA de origem africana no Nordeste e indígena na região Norte–, a miscigenação é característica de todos os estados do país. São raríssimos os casos de pessoas claramente não miscigenadas, entre as quais dez pessoas de São Paulo com DNA exclusivamente oriundo do leste da Ásia (possivelmente descendentes de japoneses), alguns indivíduos 100% europeus também em São Paulo e no Rio Grande do Sul e outros com mais de 90% de ancestralidade africana. “Esses casos foram muito surpreendentes para mim, já que isso quase não se acha na população brasileira”, conta Hünemeier.

Por fim, o trabalho trouxe ainda pistas sobre a relação entre variações genéticas e a saúde da população brasileira. A equipe identificou cerca de 8 milhões variantes de DNA até então desconhecidas, das quais mais de 36 mil podem ser deletérias para o organismo.

Além disso, os pesquisadores também detectaram áreas do genoma que parecem ter sido favorecidas pela seleção natural ao longo dos últimos 500 anos, possivelmente interferindo em processos como o funcionamento do sistema de defesa do organismo, a idade em que as mulheres chegam à menopausa, o peso e outros aspectos do metabolismo. A detecção dessa variabilidade é um primeiro passo importante para investigar como ela influencia o organismo e para pensar em estratégias de prevenção ou terapêuticas baseadas nela.