SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Era maio de 1985, apenas dois meses após a posse de José Sarney, o primeiro presidente civil do Brasil depois da ditadura militar, iniciada em 1964. Naquele momento, no dia 15, foi promulgada a emenda constitucional nº 25, que seria um dos símbolos da redemocratização do país.

No calor dos acontecimentos, talvez fosse difícil perceber o tamanho daquela alteração. Agora, olhando em retrospectiva, é possível dizer que a emenda influenciou, em alguma medida, pontos da formulação da Constituição de 1988. Também impactou a forma com que os políticos passaram a fazer campanha eleitoral.

As mudanças estabelecidas? Eleição por voto direto da população e o direito de voto para pessoas analfabetas, entre outras.

“É uma das principais conquistas do processo de redemocratização porque foi a primeira vez na história, desde 1881, quando teve uma reforma do Código Eleitoral Brasileiro, que os analfabetos puderam votar”, diz o cientista político Ivan Fernandes.

Professor da UFABC (Universidade Federal do ABC), ele lembra que, mesmo antes do golpe de 1964, vários períodos são chamados de democráticos. Entretanto, o Brasil deixava de fora do processo eleitoral grande parte da população por considerar que as pessoas iletradas não tinham condições de escolher os representantes.

Na época do golpe militar, por exemplo, o Brasil tinha uma taxa de 39,6% de analfabetismo entre pessoas com 15 anos ou mais, de acordo com o IBGE.

“No momento em que os analfabetos começam a ter esse direito ao voto e começam a participar, o sistema político rapidamente foca nesse eleitorado. Acontece, então, a construção de um sistema de proteção social que leva o pobre em conta”, afirma Fernandes, que cita como exemplos a criação do SUS (Sistema Único de Saúde) e a busca da universalização da educação pública.

Os dois exemplos relembrados por ele foram instituídos na Constituição. A Carta substituiu a que vigorava no regime militar e consolidou o processo de redemocratização.

De acordo com o professor, a emenda de 1985 colocou “o andar de baixo” no processo eleitoral e fez com que os partidos tivessem que competir pelo voto desses eleitores analfabetos.

Elaborada três anos depois, a Constituição de 1988 teve refletida em algumas de suas propostas o novo cenário de transformações no qual a emenda estava inserida.

A emenda que instituiu o voto direto e o voto analfabeto, porém, não era o único processo que ocorria naquele momento e que teve influência nos desdobramentos políticos e jurídicos do país no anos seguintes.

Fernandes cita ainda os projetos de transferência de renda, surgidos nas décadas posteriores. Para ele, um maior interesse dos governantes pelo tema tem relação também com a mudança de perfil de quem vota nas eleições, embora não seja o único fator.

O direito de pessoas analfabetas votarem chegou a existir no Brasil, mesmo que por pouco tempo, no período colonial. Durante o Império, todavia, o voto analfabeto foi abolido em 1881, oito anos antes da Proclamação da República.

Nas décadas seguintes, o debate sobre a possibilidade de analfabetos participarem da escolha dos representantes políticos voltou à baila, algumas vezes, até que em 1985 foi promulgada a emenda nº 25.

A primeira mudança que a medida gerou foi de ordem prática. Os candidatos passaram a ser identificados também por números, para facilitar a participação de todos os eleitores. É mais simples para uma pessoa analfabeta lembrar os números.

Dados da última eleição realizada no Brasil, em 2024, apontam que o país ainda tem 5,5 milhões de eleitores analfabetos, segundo o TSE (Tribunal Superior Eleitoral).

Os analfabetos estrearam no pleito de novembro de 1985, a primeira eleição após a ditadura, para a escolha de prefeitos de capitais. Na época, o país tinha 19 milhões de iletrados, de acordo com dados do Senado.

Uma das vantagens da emenda, segundo o professor de direito da UFPA (Universidade Federal do Pará) Luiz Alberto Rocha, é que ela qualificou institucionalmente o analfabeto como eleitor. A mudança não alterou o preconceito em relação à qualidade do voto dos iletrados. Na prática, porém, esse grupo consegue fazer uma análise das políticas públicas que faltam em seu dia a dia.

“Você tem uma passagem jurídica institucional importante. A representação do voto do analfabeto tira essa pessoa da sombra, como se fosse um ‘brasileiro menor'”, afirma Rocha.

“O iletrado sofre resistência até hoje. Tanto é que o analfabeto tem o que a gente chama de capacidade eleitoral ativa, pode votar, mas não tem capacidade eleitoral passiva, ou seja, não pode ser votado.”

Ele afirma que a possibilidade de voto dos analfabetos apareceu a reboque da mobilização pelo voto direto. As Diretas Já contaram com manifestações espalhadas por todo o Brasil.

Com a aproximação do fim da ditadura militar, os debates pelo direito ao voto direto para toda a população se intensificaram, e o voto para os analfabetos entrou nessas negociações da transição democrática.

Para Luigi Bonizzato, professor de direito da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), a emenda representa um marco do ponto de vista jurídico e político.

“Uma questão importante de ser destacada é o fortalecimento dos partidos políticos. O registro em um partido para que uma pessoa possa se candidatar a qualquer cargo público eletivo também vem presente na emenda nº 25 e é essencial para que a gente possa pensar em um Estado democrático que ali, ainda embrionariamente, tentava se criar”, diz.

Segundo Bonizzato, o partido tem uma importância na lógica democrática por facilitar o acesso de qualquer cidadão ao sistema político oficial. A emenda, de certa forma, teve papel de sacramentar elementos simbólicos e jurídicos da transição democrática.