CANNES, FRANÇA (FOLHAPRESS) – O Ceará continua presente no Festival de Cannes um ano depois de Karim Aïnouz levar as cores, as músicas e as paisagens do estado para a Riviera Francesa com “Motel Destino”, que competiu pela Palma de Ouro na edição passada. Agora, ele retorna com quatro filmes que não são exatamente seus.

Aïnouz é uma espécie de padrinho -ou produtor, como prefere dizer- da Director’s Factory Ceará Brasil, projeto que abre a Quinzena dos Cineastas, seção mais autoral e experimental do festival. No programa estão quatro curtas-metragens gravados em Fortaleza, cada um de uma dupla de jovens diretores.

“Eu nunca achei que isso ia acontecer durante a minha vida, que Fortaleza seria lar de quatro curtas exibidos no Festival de Cannes. Saímos de um lugar de invisibilidade para virar um player global. É bonito saber que você existe no mundo, é simbólico, e o cinema é lugar de descoberta. Estamos pondo novos tipos de personagens nas telas”, diz Aïnouz, emocionado.

As duplas foram formadas pela organização da mostra, que todos os anos combina um cineasta do país escolhido para o projeto a um de outra nacionalidade. Assim, antes de escrever o roteiro ou ligar a câmera, cada par precisou se conhecer e chegar a consensos em relação aos temas e estilos que imprimiriam nas telas.

O resultado são os curtas “A Fera do Mangue”, da cearense Wara e da israelense Sivan Noam Shimon, “Ponto Cego”, da também cearense Luciana Vieira e do cubano Marcel Beltrán, “A Vaqueira, a Dançarina e o Porco”, da alagoana Stella Carneiro e do português Ary Zara, e “Como Ler o Vento”, do amazonense Bernardo Ale Abinader e da francesa Sharon Hakim.

“Isso fala muito do lugar que o Brasil ocupa no cinema hoje, não só artisticamente, mas economicamente. E isso por meio de uma nova geração”, afirma Aïnouz. “Assim como eu aprendi muito com o Waltinho [Walter Salles], agora eu passo o bastão, numa obrigação cívica. Mas também aprendo muito com eles.”

Mais do que dar a oportunidade de exibir um curta em Cannes, porém, a Factory tem como principal objetivo criar uma vitrine para que essa nova geração de cineastas exponha seu trabalho e, na sequência, participe de rodadas de negociação para tentar financiamento e distribuição para seus primeiros longas, que ainda estão apenas no papel.

Por isso, Aïnouz conta que o projeto é uma espécie de laboratório, onde ideias são testadas a partir do choque cultural inerente à formação das duplas. Eles tiveram poucos meses para se conhecer e desenvolver o roteiro, virtualmente, para então gravar as tramas em cinco dias e montá-las em outros cinco.

“Esse foi o maior desafio, porque a gente precisa se conhecer, encontrar ideias em comum e fazer o filme, que não é meu ou dele, é um filme da Factory. O processo inteiro aconteceu por meio de uma troca muito intensa. O filme é um cartão de visita deste encontro, eu não poderia reproduzi-lo sozinha, e isso é belíssimo”, diz Luciana Vieira, de “Ponto Cego”.

É a primeira vez que a Factory escolhe não um país como lar de sua edição anual, mas um estado. Para Luisa Cela, secretária da Cultura do Ceará, a decisão é fruto de uma política de descentralização do audiovisual brasileiro que amadurece há anos, descolando-o do eixo Rio-São Paulo por meio de investimento público.

“Existe ainda essa ideia de que se temos problemas na saúde, na segurança, por que estamos gastando dinheiro na cultura? Mas essas coisas não disputam entre si, e o investimento nesse campo contribui para superar esses outros desafios. Imagina a quantidade de riqueza que Hollywood produz. Precisamos entender que esse dinheiro não é gasto, é investimento”, afirma ela.

A Factory deste ano é viabilizada com apoio da Secretaria da Cultura do Ceará, do Instituto Mirante de Cultura e Arte e do Instituto Dragão do Mar, além da produtora Janaina Bernardes, da Cinema Inflamável, e da francesa Dominique Welinsk, que esteve por trás do primeiro longa de Aïnouz, “Madame Satã”.

Além de jogar holofotes sobre uma nova geração de cineastas, a Factory, por não ter pretensão comercial ou ser uma competição, também permite que eles brinquem com gêneros, estilos e temas, afastando-os da zona de conforto e do lugar-comum do que se produz hoje no Brasil.

Os quatro filmes são díspares e incluem uma releitura feminista da Mula Sem Cabeça, uma história sobre a zona portuária de Fortaleza, um faroeste sobre uma travesti e um drama sobre uma curandeira. Os únicos pontos de conexão são o cenário, Fortaleza, uma demanda do projeto, e o protagonismo, sempre feminino, por pura coincidência.

Para Bernardo Ale Abinader, de “Como Ler o Vento”, a maior recompensa, além de estar em seu primeiro Festival de Cannes, foi poder sair do que chama de isolamento cinematográfico que vive em Manaus, sua cidade natal. “Nós estamos literalmente isolados pela floresta, então mesmo com o resto do Brasil é difícil criar uma conexão. Estar aqui em Cannes, então, é uma loucura”, afirma.