MONTEVIDÉU, URUGUAI (FOLHAPRESS) – José “Pepe” Mujica, que morreu nesta terça-feira (13), aos 89 anos, gostava de divagar sobre sua história pessoal ao falar de política.
Já sua esposa, Lucía Topolansky, 80, é conhecida por fugir de assuntos pessoais: “Vamos falar sobre a sra.? Não sobre a política, sobre a sua vida.” Se é que é possível separá-las.
Por muito tempo apelidada de “la tronca”, em alusão ao seu perfil de durona, a ex-guerrilheira tupamara acompanhou Mujica ao longo de cinco décadas. Nos últimos meses, com o avanço do câncer do marido no esôfago, mais intimamente do que nunca.
Durante uma manhã fria de quarta-feira em outubro passado, em meio a uma campanha eleitoral no Uruguai, ela recebeu a Folha na chácara do casal, em Rincón del Cerro, zona rural de Montevidéu.
Com seus cabelos curtos, finos e brancos soltos pelo rosto, transitava entre a mesa da cozinha, onde ocorria esta conversa, e o quarto, onde estava Mujica, que a chamava de tempos em tempos para pedir alguma ajuda.
Era a primeira vez desde a redemocratização, em 1985, que ela não era parte ativa de uma campanha eleitoral da Frente Ampla, coalizão de esquerda. “Não pude participar, tive que fazer uma opção de vida e me dediquei a cuidar da minha família, era o que tinha que fazer.”
Nesta família não foi apenas Mujica (no poder de 2010 a 2015) que teve projeção política. Lucía Topolansky foi deputada, senadora, ministra e vice-presidente.
No final dos anos 1960, começou a militar no Movimento de Libertação Nacional-Tupamaros. Foi presa e fugiu da prisão em 1971 junto com outras 37 mulheres, na chamada “Operação Estrela”, quando de novo entrou na clandestinidade -e começou uma relação com Pepe. Depois, voltou à prisão. Até que veio a ditadura militar, e ela permaneceu 13 ininterruptos anos na cadeia.
Topolansky cuidava do marido com disciplina militante no período em que Mujica vivia as consequências de um duro tratamento de radioterapia, após descobrir um câncer no esôfago, em abril de 2024.
Ao alcance da mão, um caderno A4 pautado reunia anotações precisas: a hora em que Mujica havia comido -e o que havia comido-, a hora em que havia bebido água, a hora em que havia ido ao banheiro. “É como uma bitácora [uma espécie de diário de bordo]; são muitos detalhes e nós queremos precisão, temos que prestar contas à médica.”
Manter Pepe Mujica na chácara que ele comprou com doações após deixar para trás 12 anos de prisão em uma solitária na época da ditadura foi uma escolha do casal. “Nós podemos, de repente, ser um pouquinho mais desajeitados, mas não, não há nada que substitua o carinho e o amor. Isso não se compra em nenhuma empresa de cuidados.”
“Nos encontramos na luta e seguimos até hoje. É uma sorte ter companhia nos momentos difíceis da velhice. Este é um mundo que tem cada vez mais solidão, e nós temos o privilégio de um projeto em conjunto que levamos adiante entre nós dois, que é parte nossa.”
Naquele outubro era Topolansky quem cuidava o tempo todo de Mujica com a ajuda de Turco, um misto de segurança e amigo pessoal que já estava com a família havia 16 anos.
Já haviam recebido muito apoio. Dois enfermeiros trabalhavam pro bono. “São companheiros”, diz a esposa. A médica ia quase diariamente checar o estado de Pepe. Na rua que dá acesso à chácara, um carro de polícia. “Mas é uma polícia entre aspas”, diz, sorrindo. “Não deixamos qualquer um ali, são também companheiros”.
O que tentou fazer pelo marido foi, em suas palavras, criar “campos de normalidade”. “Uma preocupação de Pepe era não atrasar a plantação. Os companheiros se ofereceram para cortar a alface e preparar a terra; plantaram-se girassóis, mandioca. Ele sente que segue cumprindo um papel. Os companheiros vêm aqui para que ele organize o que é preciso fazer e depois para contar como foi.”
Algumas vezes na semana, levavam Pepe para a estufa ou para andar de trator. “Nós o ajudamos a subir, ele faz um sulco para cá, outro para lá. Para a alma, isso é gigante.”
José Mujica permaneceu por 12 anos em um confinamento solitário durante a ditadura militar uruguaia (1973-1985), em um plano dos oficiais de promover tortura psicológica contra ele e outros militantes. Por muitos anos, foi impedido de se comunicar com qualquer pessoa. O campo, de onde veio sua família, tornou-se um refúgio pós-prisão.
Topolansky também foi marcada por esse período. As mulheres tardaram a falar no Uruguai sobre o período da repressão e da tortura, e até hoje boa parte dos relatos é masculina. “É muito difícil me dar conta das consequências, mas acho que os que estão ao nosso redor veem que temos manias. Não se pode passar assim, sem consequência.”
“Eu, por exemplo, por muito tempo não quis ter as portas com trancas, porque na prisão sempre se coloca a tranca, sentia isso como uma agressão. Até há bem pouco tempo tive um sono muito alerta porque, de noite, vinham às nossas celas para agredir. Me agrediram de diversas formas, mas não me violaram, tive sorte”, diz. Ainda assim: “Vi gente morrer na prisão e na tortura. Vi muitas coisas.”
Ao sair da prisão, pela primeira vez os dois ex-guerrilheiros pensaram em ter filhos. “Se tivessem vindo filhos quando saímos da cadeia, teria sido bom, mas não vieram e temos um montão de outros filhos. Tampouco fomos atrás desses mecanismos todos [para tentar viabilizar uma gravidez] que as pessoas fazem com tanto trauma.”
O casal sobreviveu à ditadura e imergiu em uma vida política sem pausas. Até a doença de Mujica.
De uma família de classe média com seis irmãos, entre eles a gêmea María Elia (também ela ex-tupamara), Lucía seguiu um caminho bem diferente do roteiro convencional para uma jovem do seu perfil. “Sempre olhei para a frente. Tinha uma causa, e o sacrifício sempre valeu à pena. A derrota seria abandonar aquilo que buscávamos.”