SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Para além do alinhamento ideológico, José “Pepe” Mujica, morto nesta terça-feira (13) aos 89 anos, e Luiz Inácio Lula da Silva (PT) cultivaram uma amizade que ultrapassou as fronteiras da política e envolveu encontros regulares, uma visita do uruguaio ao petista quando ele estava preso e uma série de afagos públicos.
Lula conheceu Mujica, então senador, em 2005, na posse de Tabaré Vázquez, o primeiro presidente de esquerda do Uruguai após a redemocratização. O brasileiro teria ficado impressionado com o discurso forte e combativo do político e buscou estreitar contato.
Em dezembro passado, o petista condecorou o ex-presidente com a medalha da Ordem do Cruzeiro do Sul, maior honraria brasileira. Na ocasião, Lula afirmou entregar a comenda a Mujica por ele ser “um amigo”. O último encontro entre os dois ocorreu em março, na posse do esquerdista Yamandú Orsí.
A relação entre Lula e Mujica se estreitou em 2010, quando ambos chefiavam os Executivos de seus países o brasileiro em seu último ano do segundo mandato, e o uruguaio no primeiro ano no cargo.
A tônica entre os dois foi a cooperação internacional como forma de integração da América Latina. Assinaram acordos em áreas como agricultura, defesa, ciência, tecnologia, energia e transportes.
Essa boa relação no âmbito político seguiu com Dilma Rousseff (PT). Com Lula, porém, Mujica manteve a amizade e uma série de afagos. O brasileiro admirava a biografia do uruguaio, que passou 13 anos preso e torturado durante a ditadura militar do país vizinho.
Em 2018, Mujica visitou Lula na Superintendência da Polícia Federal em Curitiba, quando o petista estava preso após condenação em caso do tríplex no Guarujá, ligado à Operação Lava Jato. Após o encontro, afirmou a jornalistas que haviam conversado sobre as preocupações em torno da América Latina e sobre futebol.
O brasileiro foi solto em novembro de 2019. Em fevereiro do ano seguinte, os dois se encontraram novamente na comemoração dos 40 anos do PT, no Rio de Janeiro. Falaram sobre o governo Jair Bolsonaro (PL) e a necessidade de ingresso da juventude na política.
Mujica também esteve com Lula nos dias finais de campanha na eleição de 2022 e no momento da apuração de votos. À BBC News Brasil disse após a declaração da vitória do petista que os tempos e os desafios mudaram, chamou o eleito de “um verdadeiro social-democrata” e reiterou que as críticas ao novo governo viriam da direita e da esquerda.
Encontraram-se novamente em 2023 e trataram de possíveis mudanças no Mercosul, da necessidade de blindar as organizações internacionais de domínios ideológicos, seja de direita ou de esquerda, e da criação de uma moeda comum para fluxos financeiros entre Brasil e Argentina.
Daí surgiu a foto de Lula pegando carona com o ex-presidente em seu Fusca azul. A reunião aconteceu na chácara de Mujica, embaixo de uma tenda montada do lado de fora da residência, em cadeiras de plástico, seguindo a aversão do uruguaio às formalidades e pompas dos cargos públicos.
Em uma rara controvérsia, um livro-reportagem sobre os cinco anos da Presidência de Mujica trouxe uma suposta confissão que Lula teria feito ao líder uruguaio em 2010. A obra “Una Oveja Negra al Poder” (Uma ovelha negra no poder) relata que o brasileiro teria dito, sobre o escândalo do mensalão, que aquela seria a única forma de governar o Brasil.
Lula sempre negou saber do escândalo, e Mujica, questionado sobre a frase, negou ter conversado com o petista sobre o assunto e afirmou não ter escrito o livro. O Instituto Lula divulgou nota reiterando que aquela conversa nunca teria ocorrido.
A condecoração com a Ordem do Cruzeiro do Sul, no ano passado, ocorreu em viagem do presidente brasileiro a Montevidéu para participar da cúpula de chefes de Estado do Mercosul. A agenda tinha peso depois de quase 25 anos, o acordo entre o bloco e a União Europeia seria, então, formalizado.
Mesmo assim, Lula encontrou Mujica antes, em sua casa, e lhe concedeu a honraria. Segundo Lucía Topolansky, esposa de Mujica, ex-vice-presidente e ex-senadora, o uruguaio ficou contente pela comenda, mas “o que mais apreciou foi a visita”.
“Eu digo sempre que a gente não escolhe irmão. A gente não escolhe nem sequer mãe. Agora, um companheiro a gente escolhe. E eu posso dizer que de todos os presidentes que eu conheci, que eu tive amizade e com que convivi muitos anos, Pepe Mujica é a pessoa mais extraordinária que eu conheci”, disse Lula, que chorou no encontro.
Além das ocasiões com Lula, Mujica esteve presente em outros eventos no Brasil. Em 2015, o uruguaio participou de seminário promovido pela Federasur (Federação de Câmaras de Comércio e Indústria da América do Sul) e se encontrou com estudantes, que lotaram a Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro).
No ano seguinte, voltou ao país para receber a medalha da Inconfidência, maior condecoração mineira, em meio à crise política brasileira que derrubaria Dilma. Em discurso, pediu respeito ao voto popular e afirmou que “a única fonte real de legitimidade na democracia é o voto”.