BUENOS AIRES, ARGENTINA (FOLHAPRESS) – A relação de admiração e desconfiança que argentinos e uruguaios cultivam entre si também se refletiu em diferentes episódios protagonizados pelo presidente José Pepe Mujica, morto nesta terça-feira (13) aos 89 anos, e líderes políticos da outra margem do rio da Prata, sobretudo as lideranças peronistas.
Com a ex-presidente Cristina Kirchner, o vínculo bilateral foi testado algumas vezes, como em um dos capítulos da crise evolvendo uma fábrica de celulose no lado uruguaio da fronteira, batizada de “guerra das papeleiras”.
Em seguida, a crise causada por uma obra a dragagem no canal Martín García no rio da Prata, de administração compartilhada teve acusações de cobrança de propina. Quando não contaram com a intervenção de outros países, como o Brasil, os atritos foram resolvidos por tribunais internacionais.
Ao se referir ao casal Kirchner, Néstor e Cristina, Mujica protagonizou uma gafe que entrou para o anedotário político da região, encantou a oposição e é relembrada por críticos do kirchnerismo até hoje, ao não perceber que estava com o microfone ligado durante uma visita da colega argentina ao Uruguai.
“Esta velha é pior do que o caolho”, disse o uruguaio em 2013, pouco antes do início de uma entrevista coletiva, em referência a Cristina e seu falecido marido, que era estrábico.
“Nada nem ninguém pode nos separar, definitivamente”, afirmou depois o uruguaio no programa semanal de rádio que mantinha durante a sua Presidência, ressaltando que os povos da Argentina e do Uruguai nasceram “da mesma placenta”.
Após ambos deixarem o poder, eles se reencontrariam diversas vezes. A última delas foi em uma ida de Cristina ao sítio onde ele morava, nos arredores de Montevidéu, em fevereiro deste ano. “Eu lhe disse que ela fosse uma caudilha para os mais jovens.”
Refletindo sobre a crise que envolve o peronismo após o fracasso do governo de Alberto Fernández, Mujica sugeriu aos vizinhos que se inspirassem em sua força política, a Frente Ampla, que superou diferenças e, assim, conseguiu voltar ao poder, com a eleição de Yamandú Orsi em 2024.
“Espero que o peronismo possa resolver suas diferenças internas, que em todos os movimentos são inevitáveis, e dirigir a proa do navio para defender o povo argentino. Que ele aceite os erros que cometeu e aceite superá-los”, disse o ex-guerrilheiro.
Mujica já havia feito críticas ao movimento político argentino, ao comentar a vitória de Javier Milei em 2023, na disputa com o então ministro da Economia, Sergio Massa. Ele afirmou que o peronismo “não estava à altura das circunstâncias” e que as urnas refletiam a insatisfação dos argentinos com a inflação alta, que gera “crises sociais e políticas imprevisíveis”.
Ele fez a ressalva de que o movimento deixou um legado de distribuição de riquezas em um país que antes era mais desigual, mas afirmou que as novas gerações não conseguiram enfrentar os desafios atuais.
Já distante do poder, Mujica se tornou uma referência para lideranças argentinas mais jovens e à esquerda do peronismo, como o ativista político Juan Grabois, pré-candidato a presidente do país em 2023 e que compartilhou detalhes de um encontro com o ex-presidente e sua esposa, Lucía Topolansky.
“Agradeço seu carinho e conselhos políticos, mas acima de tudo o exemplo ético e humano em um momento em que temos de enfrentar uma cultura dominada pela exclusão e pelo consumismo”, publicou em suas redes sociais o líder do Movimento de Trabalhadores Excluídos, que representa atividades à margem do trabalho formal, como catadores de recicláveis.
Para além da política, o ex-presidente do país vizinho foi homenageado com o título de doutor honoris causa pela Universidade de Buenos Aires, em 2015. “É uma oportunidade de os argentinos homenagearem um cidadão americano que fez de sua vida o que ele pregava. Alguns podem estar de acordo com seus princípios, outros podem não estar, mas todos concordam que a sua vida é um exemplo”, disse o então reitor da UBA, Alberto Barbieri, na cerimônia.
No ano passado, a primeira parte do documentário “Os Sonhos de Pepe”, de Pablo Trobo, que acompanha as viagens de Mujica, foi uma das atrações mais aplaudidas no Festival de Cinema Latino-Americano de La Plata.
“Muito do que ele dizia serve para debater e pensar, para que os argentinos não acreditem (como costumamos fazer) que somos o umbigo do mundo. Na nossa frente tem um país pequeno que nos dá exemplo”, disse o jornalista argentino Gustavo Sylvestre, ao apresentar um livro de entrevistas com Mujica publicado por ele.
Ainda durante a pandemia, quando um helicóptero da Presidência argentina foi buscá-lo no Uruguai, o ex-presidente recebeu das mãos de Alberto Fernández, em 2021, a mais alta distinção do país, a Ordem do Libertador San Martín. Aproveitou para dizer que amava a Argentina e a América Latina.
“Não sou nada mais do que um compatriota com algumas leituras”, disse ele, acrescentando que “os seres humanos precisam de relíquias para resumir seus sentimentos, como bandeiras ou sinais de todos os tipos”. “Os maiores monumentos que o homem construiu foram para evitar a morte e deixar um legado.”
Naquela tarde na Casa Rosada, Mujica também destacou o lugar nevrálgico que o país ocupa na região. “Argentinos, por favor, amem-se um pouco mais e lutem por nós, vocês são uma parte vital da nossa América Latina e precisam estar cientes do mundo que está chegando.”