SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Pesquisadores desenvolveram um modelo científico que pode ajudar a explicar as chamadas experiências de quase morte (NDEs, na sigla em inglês), como visões ou sensações reportadas por algumas pessoas em situações de risco de vida. A ideia foi descrita em estudo publicado no fim de março na revista Nature Reviews Neurology.
Chamado Neptune (sigla em inglês para teoria para compreender a experiência de quase morte com base neuropsicológica e evolutiva), o modelo oferece uma base para entender esses episódios a partir de uma série de eventos neurofisiológicos e psicológicos que teriam caráter evolutivo.
“Até agora, várias teorias foram propostas para explicar NDEs, mas frequentemente eram desenvolvidas isoladamente”, diz a neurocientista Charlotte Martial, autora correspondente do novo trabalho. “Na pesquisa, apresentamos o primeiro modelo neurocientífico abrangente de NDEs oferecendo uma explicação coerente para como experiências tão vívidas e complexas podem ocorrer em situações fisiológicas extremas.”
O grupo que propôs o modelo é formado por pesquisadores do Grupo de Ciência Coma do Instituto Giga, da Universidade de Liège e do Hospital da Universidade de Liège, na Bélgica, além de cientistas da Dinamarca e dos Estados Unidos.
Como em muitos casos de experiências de quase morte ocorre a liberação de neurotransmissores envolvidos em situações de perigo iminente ou fuga, os pesquisadores dizem acreditar que compreender como esses mecanismos evoluíram pode ajudar a prever essas situações e até mesmo a tratar o indivíduo antes da morte cerebral definitiva.
Entre os eventos neurológicos envolvidos com as NDEs estão aqueles de origem química (liberação de neurotransmissores em regiões específicas do cérebro) e cognitivos (interpretações e memória dos eventos).
“Quando o cérebro é privado de picos de oxigênio, ocorre uma falta de energia nas células cerebrais [anoxia], desencadeando uma reação em cadeia. Ao mesmo tempo, o cérebro libera grandes quantidades de neurotransmissores que podem desempenhar um papel diferente nas NDEs, como sentir paz, ver imagens vívidas, sentir-se desconectado do corpo ou ter memórias fortes”, afirma a neurocientista.
Por exemplo, os receptores de serotonina aumentam, provocando uma sensação calmante, ao mesmo tempo que níveis elevados de endorfina e do neurotransmissor GABA levam a uma sensação de paz profunda. Já a visão de imagens e o sentimento de hiper-realidade podem ser explicados pelo aumento da liberação de dopamina no cérebro. Neurotransmissores ligados à cognição podem ajudar a explicar por que as pessoas se lembram de uma experiência de quase morte.
“O espectro de experiências conscientes em humanos é tão vasto que é desafiador identificar um único sistema. É muito mais provável que seja uma combinação de sistemas ativados permitindo o surgimento dessas experiências subjetivas complexas”, diz a cientista.
De acordo com os autores, é possível que as experiências de quase morte tenham uma base evolutiva, já que os mesmos transmissores e partes cerebrais são ativados em diversos outros animais, conforme experimentos em laboratório. Animais que praticam a tanatose, mecanismo de defesa em que simulam a própria morte para evitar serem devorados por predadores, possuem os mesmos sistemas ativados que em uma NDE.
Para Martial, compreender como a atividade cerebral se recupera após uma ressuscitação ou mesmo os fenômenos que emergem à beira da morte pode ajudar a entender melhor como se dá a consciência humana.
“Essas experiências são paradoxais, pois frequentemente ocorrem em situações nas quais assume-se que não há consciência, mas os indivíduos relatam experiências vívidas e significativas”, diz a neurocientista. “Isso levanta questões importantes sobre a consciência e, em última análise, também pode ajudar a refinar o que supomos que os humanos experimentam durante o processo de morte.”
Martial e os demais pesquisadores estão colhendo relatos em todo o mundo de experiências de quase morte. Caso queira participar da pesquisa em português, pode acessá-la através desse link.