SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Durante muito tempo, o 13 de maio foi considerado um dia de celebração à princesa Isabel pela assinatura da Lei Áurea, em 1888. Hoje, a data ocupa um novo lugar no imaginário brasileiro -que não apenas reconhece o protagonismo da população negra e de movimentos abolicionistas, mas também denuncia a herança de uma abolição inacabada.

“Que abolição é essa que veio sem cidadania, sem direito a escola, sem acesso a terra e sem emprego, mas trouxe violência e criminalização das pessoas negras e de suas práticas cotidianas e culturais?”, questiona Luciana Brito, doutora em história pela Universidade de São Paulo e professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia.

“É claro que o 13 de maio tem um papel importante para a população negra brasileira. Foi criada uma lei oficial que acabava com a escravidão. Mas o dia seguinte deixa um legado que se arrasta até hoje para pessoas que já estão bem distantes da escravidão sob o aspecto jurídico”, diz.

De acordo com ela, a memória da escravidão se manifesta em situações como a de desigualdade salarial no mercado de trabalho, onde pessoas negras ganham menos do que as brancas. A pesquisadora considera que esse tipo de problema tem raízes em ideias como a de que pretos e pardos são mais aptos a trabalhar em condições vexatórias e sem direitos trabalhistas, por exemplo.

“Também vemos isso na naturalização da violência sobre os corpos de mulheres negras, que são a maioria das vítimas de feminicídio. Além disso, é completamente natural no Brasil que uma criança ou um adolescente negro seja vitimado de forma fatal pelo racismo, e isso não mobiliza a sociedade a ponto de construirmos uma prática para o fim da violência racial -que se expressa muitas vezes através do próprio Estado brasileiro”, diz.

Por esse motivo, a especialista defende que o Estado permanece em dívida com essa parcela da população. “O corpo negro no Brasil ainda é o corpo menos cidadão e o menos legitimado por direito. O que faz com que a gente aceite e ainda veja isso como democrático é o trabalho inacabado do 13 de maio, que veio sem o comprometimento com o fim do racismo”, afirma.

Brito é organizadora, ao lado do Instituto Ibirapitanga, do livro “Reparação: Memória e Reconhecimento”, a ser lançado no fim de maio pela editora Fósforo. A obra reúne o conteúdo de oito diálogos apresentados no seminário “Memória, Reconhecimento e Reparação”, que reuniu escritores, pesquisadores e intelectuais negros no Museu da História e da Cultura Afro-Brasileira do Rio de Janeiro em setembro de 2023 para falar sobre passado, presente e futuro da população negra.

Apesar das críticas, a pesquisadora observa que a data pode ter diferentes significados para a população. “O 13 de maio tem uma dimensão popular. Nesta semana, na cidade de Santo Amaro do Recôncavo Baiano, a população faz uma celebração chamada ‘Bembé do Mercado’, que é um candomblé de rua, agradecendo aos orixás pela alforria, pela liberdade e pela abolição”, conta.

A celebração pelo fim da escravidão e à resistência do povo negro foi realizada pela primeira vez em 1889, um ano após a assinatura da Lei Áurea. Em 2019, foi reconhecida pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) como Patrimônio Cultural do Brasil.

Ainda sob o ponto de vista da memória popular, Brito cita o culto dos terreiros de Candomblé ao 13 de maio. É um momento de honrar a memória dos antepassados e ancestrais que sofreram e foram resilientes mediante às agruras da escravidão, explica.

A historiadora associa as festas populares ao protagonismo negro e cita as diversas estratégias usadas por escravizados para conquistar a liberdade. Ela afirma, por exemplo, que uma parcela pequena da população brasileira ainda era escravizada quando a lei foi assinada. A maioria das pessoas negras eram livres -libertos, nascidos livres ou compradores da própria liberdade.

“Em um trabalho muito longo e muito bem articulado, o movimento negro brasileiro foi se encarregando de construir o que nós temos hoje como narrativa histórica”.

O questionamento de parte da população com as comemorações da data faz parte desse trabalho de conscientização, afirma a professora. Uma das consequências, de acordo com ela, é que a data não virou feriado oficial.

Já o 20 de novembro (data da morte de Zumbi dos Palmares) tornou-se feriado nacional em 2023, como o Dia da Consciência Negra.

“Enquanto o 13 de maio é uma produção das elites nacionais e constrói a imagem da realeza como a história oficial, o 20 de Novembro é fruto de uma luta popular dos movimentos negros organizados”, explica.