SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Entre 2013 e 2023, o Brasil teve um total de 51.608 mortes com características condizentes com assassinatos, mas que acabaram registradas nos sistemas do Ministério da Saúde como sendo sem causa fosse determinada.
O cálculo é do Atlas da Violência, estudo publicado nesta segunda-feira (12) pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Os autores do Atlas classificam esses casos como homicídios ocultos. São ocorrências cadastradas no Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), do governo federal, como mortes violentas por causa indeterminada a princípio porque não era possível determinar se ocorreram por acidente, homicídio ou suicídio, mesmo que os detalhes apontem para um caso de assassinato.
Para conseguir classificar cada caso, o Ipea compilou as características de todas as mortes violentas no país desde 1996, reunindo milhões de registros. Cada um deles contém dados sobre o local da ocorrência, instrumento usado na morte, idade da vítima, sexo, cor da pele, escolaridade e estado civil, por exemplo.
Com isso, o instituto conseguiu traçar os padrões de homicídios, suicídios e acidentes de cada região do país. Isso foi feito por meio de programas de computador que analisaram os dados de todas as ocorrências, para identificar as características mais comuns dos homicídios.
Sexo masculino, adolescente ou jovem adulto, pele negra, baixa escolaridade, morto em via pública e com arma de fogo, por exemplo, são características que aumentam muito as chances de tratar-se de homicídio doloso. A metodologia do Atlas da Violência classifica um caso como homicídio oculto quando mais de um desses detalhes são encontrados num mesmo caso.
Segundo o estudo, os homicídios correspondem a 38% das 135.407 mortes violentas por causa indeterminada registradas em todo o período a analisado. Em média, 4.692 homicídios deixaram de ser contabilizados por ano.
“Para que se possa entender a magnitude do problema, o somatório de homicídios ocultos entre 2013 e 2023 foi maior do que os homicídios registrados no último ano analisado”, diz trecho do estudo. “Tais homicídios cujas causas básicas o Estado não identificou correspondem a tragédias invisibilizadas correspondentes à queda de 100 Boeings 747-8i totalmente lotados, sem sobreviventes.”
O Atlas também aponta que o problema não é aleatório e está concentrado nos dados de alguns estados. São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Bahia têm 66% das mortes violentas por causa indeterminada no SIM.
Tanto o número absoluto de homicídios ocultos quanto a proporção deles no total de mortes violentas no país passaram a crescer a partir de 2018, mantendo-se num patamar mais elevado em comparação a anos anteriores. Em 2023, segundo o estudo, foram 3.755 homicídios ocultos em todo o país redução de 37% em relação ao ano anterior.
Desde 2018, uma portaria do então Ministério da Segurança Pública (hoje incorporado ao Ministério da Justiça) determina que mortes com indício de crime ou sinal de agressão externa qualificada como “encontro de ossada”, “encontro de cadáver”, “morte a esclarecer”, “morte suspeita”, “morte por causa desconhecida” e similares devem ser classificadas como homicídio. O número de homicídios ocultos, no entanto, cresceu após a publicação dessa regra.
“Existe uma grande heterogeneidade na forma como esses dados são classificados e são colocados no sistema”, disse o pesquisador Daniel Cerqueira, um dos coordenadores do Atlas da Violência, à Folha de S.Paulo. “Pelo que me consta, ainda não se conseguiu obter uma padronização adequada desses dados provenientes do registro de [boletins de] ocorrência. Então cada estado, muitas vezes, termina classificando de uma forma ou de outra, o que gera algumas diferenças.”
O estado de São Paulo teve 2.277 homicídios ocultos em 2023, o que corresponde a 60% dos casos no país, ainda de acordo com o Atlas. Além disso, eles cresceram 130% num período de 11 anos, apesar de uma pequena queda (5,5%) entre 2022 e 2023.
O número de homicídios ocultos no estado em 2023 é próximo, por exemplo, à população de São João do Pau d’Alho, no oeste de SP, que tem 2.242 habitantes, e é maior do que a população de outros 29 municípios paulistas.
Homicídios ocultos em 2023
Números se referem a casos com causa indeterminada, mas com características de assassinato
Brasil – 3.755
São Paulo – 2.277
Minas Gerais – 358
Ceará – 251
Bahia – 138
Paraná – 129
Rio de Janeiro – 122
Pará – 78
Pernambuco – 50
Rio Grande do Norte – 50
Alagoas – 40
Mato Grosso – 36
Maranhão – 35
Goiás – 29
Amazonas – 20
Rio Grande do Sul – 20
Distrito Federal – 19
Mato Grosso do Sul – 18
Rondônia – 17
Santa Catarina – 17
Acre – 12
Piauí – 9
Espírito Santo – 7
Paraíba – 7
Tocantins – 6
Sergipe – 5
Amapá – 3
Roraima – 2
Fonte: Atlas da Violência 2025, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e Fórum Brasileiro de Segurança Pública
A inclusão dos homicídios ocultos na estatísticas alteraria a posição do estado de São Paulo no ranking de violência. A taxa de homicídios registrados, que é de 6,4 para cada 100 mil habitantes, chegaria a 11,2. “Com isso, o estado de São Paulo deixa de ser a UF [unidade da federação] menos violenta da nação, passando para a segunda posição, atrás de Santa Catarina”, diz o estudo.
Há casos de governos estaduais que tiveram sucesso na redução desse fenômeno, segundo os pesquisadores. No Espírito Santo, por exemplo, um grupo de trabalho com integrantes das secretarias de Saúde, Segurança Pública e Planejamento foi criado para melhorar a sincronia das informações do SIM e da polícia. “Com isso, enquanto a estimativa de homicídio oculto no ES em 2022 foi de 205 casos, em 2023 esse indicador passou para apenas 7 casos”, diz o estudo.
Para o país como um todo, por outro lado, os homicídios ocultos não alteram a tendência de diminuição na violência que se observa nas estatísticas oficiais de assassinato. O Atlas aponta que o Brasil teve uma taxa de 23 homicídios estimados para cada 100 mil habitantes em 2023. É a menor taxa em 11 anos, assim como nas estatísticas oficiais do Ministério da Saúde.