SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Quem decide se debruçar sobre as canções de Dalva de Oliveira vai encontrar um repertório romântico onde muitas vezes a palavra “dor” aparece mais do que “amor”. Figura gigantesca na música, principalmente no samba-canção da década de 1950, agora ela é reverenciada por outra presença feminina fundamental na compreensão dos caminhos musicais brasileiros, notadamente nos anos 1960 e 1970. Alaíde Costa está lançando o álbum “Uma Estrela para Dalva”, caso raro no qual a voz que faz o tributo é tão relevante quanto a da homenageada.
Alaíde vai comemorar 90 anos em dezembro, e a cantora vive uma fase inusitada em sua carreira, de retorno a um público maior. Desde 2020, ela lançou quatro álbuns. É um volume grande de trabalho, que põe a artista numa evidência incomum para nomes veteranos. Nesses discos, ela gravou com um time variado de bons músicos e produtores, mas é com essa homenagem a Dalva que toda a força de Alaíde volta a aparecer.
Os repertórios desses álbuns recentes são um tanto irregulares. Algumas canções servem para mostrar às novas gerações o poderio vocal dessa carioca famosa desde sempre por shows entusiasmados, mas uma parte do material soa um pouco estranha. Simplesmente são iniciativas que não contribuem para encorpar a grande coleção de sucessos da cantora.
Mas aí surge a ótima ideia de cruzar Alaíde com Dalva, no álbum com produção de Thiago Marques Luiz. As duas eram amigas. Estrela da era do rádio e morta precocemente aos 55 anos, em 1972, Dalva oferece em sua lista de gravações um resgate de Ataulfo Alves, Lupicínio Rodrigues, Herivelto Martins, Klecius Caldas e outros figurões dessa coisa de compor grandes canções.
No caso desse álbum, que carrega o mérito de extrapolar os sucessos mais populares de Dalva, há espaço para “Segundo Andar”, de Alvarenga e Ranchinho, que Alaíde grava com os bambas Filó Machado no violão e Léa Freire na flauta, e até para uma versão alternativa de “El Dia que Me Quieras”, na qual o piano de Amaro Freitas foge do habitual bolerão que a maioria dos intérpretes prefere imprimir ao clássico de Carlos Gardel.
Os sucessos mais arrebatadores de Dalva têm representantes nas 17 faixas do disco. Entre outras, mais uma participação de Amaro em “Bandeira Branca”, que ela gravou em 1970 depois de um hiato na carreira devido a um acidente, e “Errei Sim”, de Ataulfo, gravada pela cantora em 1950. Esta ganha uma performance emocionante de Alaíde, em vocal de coração dilacerado, despejando os versos sobre o piano magistral de Antonio Adolfo.
Num disco de arranjos certeiros, mas bem enxutos, e com uma instrumentalização espartana, os acompanhantes da cantora são de primeiríssimo time. Roberto Menescal, por exemplo, tem uma participação no samba “Sebastiana da Silva”, de Rômulo Paes, que pouco lembra a gravação original de Dalva em 1951. Na verdade, Menescal usa todo o domínio que tem das cordas para criar uma atmosfera que acaba rompendo um pouco o vale de lágrimas que aparece em muitas faixas.
Os convidados formam uma lista de virtuosos, elencando nomes como Guinga –em “Bom Dia”, de Herivelto Martins e Aldo Cabral, gravado originalmente em 1942–, Gilson Peranzetta –“Distância”, de Marino Pinto e Mário Rossi, de 1953–, José Miguel Wisnik –“Mentira de Amor”, de Lourival Faissal e Gustavo de Carvalho, em 1950–, Roberto Sion –“Neste Mesmo Lugar”, de Klecius Caldas e Armando Cavalcante, de 1956– e André Mehmari –“Fim de Comédia”, de Ataulfo Alves, de 1951.
Mas, em outro acerto da produção, esses monstros sagrados de seus instrumentos são realmente coadjuvantes de luxo. Alaíde está no comando, mesmo ao lado de uma potência vocal como Maria Bethânia, num dueto para o clássico “Ave Maria no Morro”, de 1942, de Herivelto Martins.
Depois de repertórios irregulares, mas que a aproximaram de novas gerações, neste disco a voz forte de Alaíde se sobressai diante da inventividade dos arranjos e das ótimas execuções. Num universo de canções de desamor e desilusão, que também foi um dos caminhos fortes em sua carreira, ela encontra em Dalva o combustível para, mais uma vez, ressurgir como uma diva da música brasileira.
Uma Estrela para Dalva
Onde: Nas plataformas digitais
Autoria: Alaíde Costa
Gravadora: Deck
Avaliação: *Ótimo*