SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O que Viçosa, em Minas Gerais, e a Antártida têm em comum? Não, o que virá a seguir não é uma piadinha. No interior do Brasil, bem longe de terras nevadas, as terras viçosenses guardam possíveis segredos antárticos.

A cidade, mais especificamente a UFV (Universidade Federal de Viçosa), dispõe de um dos principais bancos de solos antárticos do mundo. São agora 3.715 amostras de mais 650 perfis de solo –pedaços do solo que possibilitem ver sua composição– catalogados e disponíveis para pesquisas.

O banco permite acompanhar as mudanças pelas quais o continente passa durante a crise climática e as respostas do local a ela. Funciona, também, como um facilitador para estudos que busquem entender dinâmicas da região sem necessariamente enviar missões para lá, uma empreitada extremamente cara.

Recentemente, por exemplo, graças ao banco foi realizado um estudo que apontou que a crise do clima deve esverdear áreas da Antártida e tornar parte dela um sumidouro de carbono –longe de compensar, porém, as enormes emissões de outros lugares com degelo do permafrost, por exemplo.

O local em Viçosa é fruto de mais de 20 anos de viagens e coletas na Antártida.

Carlos Schaefer, 59, é um dos idealizadores do projeto. A amostra seminal do banco foi coletada por ele e, à época, um doutorando. O ponto de coleta –e o consequente exemplar 01– foi aberto logo atrás da estação antártica brasileira Comandante Ferraz, debaixo de muita neve.

“Era dezembro de 2002 e eu não queria perder tempo. Tinha, mais ou menos, uns 40 centímetros de neve [sobre o solo]”, diz Schaefer, professor da UFV. “Nós dois revezamos, cavamos, chegamos ao permafrost, coletamos e depois botamos os sensores lá para monitorar a temperatura do solo. Hoje, ele [o ponto de coleta] está lá todo automatizado, cheio de sensores espetados.”

Schaefer, que já havia trabalhado com solos gelados, viu em 2001 uma chamada CNPq para o ProAntar (Programa Antártico Brasileiro). Foi então que pensou em começar a trabalhar com modelagem climática de permafrost –em linhas gerais, solo congelado.

O início do banco veio da percepção de falta de dados e de uma lacuna na pesquisa polar mundial. Já no Brasil, segundo Schaefer, havia o pesquisador polar Jefferson Simões, da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), trabalhando com o manto de gelo, o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) lidando com a atmosfera, cientistas do Instituto de Oceanografia da USP atuando na parte marinha mais voltada à biologia, e, por fim, pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande olhando para o gelo marinho.

“A gente entrou no permafrost”, afirma Schaefer, em uma referência metafórica que pode ser tomada de modo literal. Para compor o banco de solos, os cientistas precisam passar pela camada de gelo e perfurar o solo, o que pode significar um trabalho e tanto.

Sensores e força bruta

Segundo Schaefer, nem todo buraco cavado para coleta de solo resulta em um ponto de monitoramento climático, que permite, por exemplo, acompanhar quase em tempo real a temperatura do local. Só é feita a instalação de sensores em uma fatia do solo que seja representativa da região.

O solo escavado pode significar a movimentação de mais de 150 kg, com a retirada de cerca de 1,5 kg de amostras. Após isso, a terra volta para o seu lugar. A ideia é tentar não deixar impactos para trás.

O cientista acrescenta que, mais do que força, o importante é querer fazer. “É o tesão em fazer aquilo. Sem tesão ninguém faz nada na ciência, né? Tem de gostar. Está no meio da tempestade de neve, está frio e está lá cavando.”

Restos de tecnologia e ossos

Ao mesmo tempo em que buscam não deixar nada para trás, ao passar pelas camadas de terra algumas vezes os pesquisadores encontram marcas do passado.

Enquanto trabalhava no solo da Ilha Livingston, em 2010, Schaefer se deparou com ossos e algo mais que ele não sabia explicar.

“Comecei a achar umas placas de couro com osso misturado. Imediatamente abaixo disso, um material que eu nunca tinha visto antes, parecia uma gelatina preta dura, um óleo cristalizado.”

O couro e os ossos eram de foca. O cientista percebeu que se tratava de um acampamento “foqueiro”.

“Quando descobriram a Antártida, William Smith, Nathaniel Palmer e outros levavam ‘foqueiros’, que ficavam lá no verão. O cara matava uma porrada de foca e destilava o óleo”, afirma o pesquisador, referindo-se a décadas do século 19. “Aquela coisa preta era óleo queimado, que tinha virado uma resina. Aquele couro era a cobertura das choupanas; o telhado colapsou com o abandono.”

Schaefer diz que o achado gerou uma publicação e a indicação do local como os primeiros arqueoantrossolos –solos do passado antártico alterados pelo ser humano– da Antártida.

Outro achado diz respeito a exploradores mais recentes. Schaefer conta que, no começo do século 20, o geólogo sueco Otto Nordenskjöld (1869-1928) guiou uma expedição de alguns anos que acabou presa na Antártida após o naufrágio do navio que deveria levá-los para casa.

“Em 12 de fevereiro [1903], o Antarctic [navio da expedição] foi abandonado e, uma hora depois, estava enterrado no oceano”, escreveu Nordenskjöld, em seu relato de viagem.

O pesquisador brasileiro resolveu, então, ir cavucar no local onde teria sido um dos acampamentos usados pela expedição. “Achei o material que era o acampamento dele”, diz Schaefer. “Como é que eu sei disso? Tinha uma pilha de ossos, eles matavam pinguins para comer. E achei pedaço de material deles daquela época.”

“Nós matamos cerca de 400 pássaros, que se provaram suficientes para nosso inverno”, escreveu Nordenskjöld. “Porém, para o nosso paladar, carne de foca é muito melhor do que a de pinguins. É especialmente importante notar que é impossível obter, mesmo de um grande número de pinguins, gordura suficiente para servir como combustível durante o inverno.”

Próximo a esse local, havia sido construída uma base inglesa que, na década de 1940, pegou fogo. “A base inglesa tinha fio de cobre, bateria de chumbo, resíduos industriais. Esse troço derreteu e entrou no solo, contaminando-o”, diz Schaefer, apontando ainda a realização de uma análise do perfil do solo local.

Ele teve a ideia, então, de classificar o local como o primeiro tecnossolo da Antártida, ou seja, que foi fortemente impactado por presença de metais pesados.

“Esse trabalho é interessante porque gerou a ideia de que o homem contaminou a Antártida muito antes do que se pensava. Mostramos que o nosso legado, um legado nocivo, é muito antigo”, afirma Schaefer.