SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Uma eventual aprovação de proposta pelo Congresso abrandando a punição para crimes contra o Estado democrático de Direito “influenciados por uma multidão” pode se desdobrar, na prática, em um intrincado debate no STF (Supremo Tribunal Federal) para avaliar a quais acusados pelos ataques do 8 de janeiro a condição mais benéfica se aplicaria.
Como mostrou a Folha, alterações na Lei de Defesa do Estado democrático de Direito nessa direção estão sendo discutidas pela cúpula do Congresso, com objetivo de diminuir as penas daqueles que não tiveram papel de planejamento ou financiamento naqueles atos.
A articulação ocorre em meio a ofensiva bolsonarista para aprovação de uma anistia ampla.
Especialistas consultados pela Folha têm opiniões distintas sobre a adoção desse tipo de proposta, mas afirmam que essa análise seria complexa e pode levar praticamente a um novo julgamento.
Isso porque, apesar de a lei mais benéfica ao réu poder retroagir, a decisão sobre a quais dos réus ela se enquadraria ou não seria tomada pelo tribunal, caso a caso, a partir das provas em cada processo. Uma dos aspectos que pode gerar controvérsia, por exemplo, seria a de quem cometeu os crimes meramente influenciado pela multidão e quem teve papel de influenciar.
Diego Nunes, professor de história do direito penal da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e organizador do livro “Crimes Contra o Estado Democrático de Direito”, considera que, a partir dos casos já julgados, o STF parece entender que todos contribuíram em algum grau para influenciar uns aos outros.
“Por isso me parece que colocar no tipo penal a questão da influência da multidão não traria de forma automática a redução para os envolvidos no 8/1”, diz, afirmando ser possível que parte deles seja considerada como influenciadores.
Nunes avalia, porém, que uma alteração legislativa nessa linha pode ser positiva, por descrever a participação no crime de forma mais detalhada.
A advogada Tatiana Stoco, que é professora de direito e processo penal do Insper, faz a ressalva de que alterar a lei para diminuir as penas poderia servir como um incentivo a atos do tipo no futuro.
Ela também minimiza a importância da alteração, apontando que hoje existe no Código Penal uma atenuante da pena para crime cometido “sob a influência de multidão em tumulto, se [a pessoa] não o provocou”.
No caso de Aécio Lúcio Pereira, primeiro a ser condenado pelo 8 de janeiro, com pena de 17 anos, sua defesa chegou a pedir que ela fosse aplicada.
O voto do relator Alexandre de Moraes, que foi seguido pela maioria, considerou a inexistência de atenuantes. O ministro Cristiano Zanin, por sua vez, também rejeitou a aplicação de uma pena menor por este motivo, afirmando ser “evidente que ele [réu] deu causa à turbulência provocada”.
Também no processo da ré que pichou a estátua “A Justiça”, Débora Rodrigues, e que tem sido usado pelos bolsonaristas como símbolo do pedido de anistia, os votos de Moraes e Zanin seguiram a mesma linha.
Ainda sem um texto público apresentado, o projeto de alteração na lei ainda está em debate de bastidores e passará pelo presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União Brasil-AP). No fim de março, o senador Alessandro Vieira (MDB-SE) apresentou uma proposta de lógica semelhante à que está sendo negociada.
Um segundo ponto em comum discutido para diminuir as penas do 8 de janeiro seria impedir que a condenação em duplicidade pelos crimes de golpe de Estado e de abolição do Estado democrático de Direito.
A maioria dos especialistas consultados pela reportagem entende, porém, que não caberia a uma lei definir, por exemplo, que um crime poderia “absorver” o outro, como defendeu o ministro Luís Roberto Barroso em seu voto.
Eles apontam que esse tipo de análise deve ser feita pelo juiz no caso concreto. Já 1 dos 4 entrevistados considerou que seria preciso debater a redação em si, mas que os parlamentares poderiam criar tal previsão.
O professor de direito penal da PUC-RS e autor do livro “Crime Político, Segurança Nacional e Terrorismo”, Alexandre Wunderlich, diz que o debate de aprimoramento da Lei de Defesa da Democracia, que foi aprovada em 2021, não pode se dar no calor dos fatos.
“Legislações de emergência para atender determinadas situações pontuais não funcionam”, afirma. Para ele, houve excesso de punitivismo em condenações envolvendo o 8 de janeiro, e o problema não está na lei, mas em como ela foi aplicada.
Francisco Monteiro Rocha, advogado e professor de direito penal da UFPR (Universidade Federal do Paraná), avalia que o caminho de alterar as penas, para haver maior proporcionalidade nos casos de quem teve uma contribuição menor, pode ser adequado.
Ele aponta, porém, que o que ocorre no julgamento no 8/1 é um aspecto estrutural na cultura jurídica do país, que não aplicaria o aparato penal já existente para fazer a diferenciação entre quem tem maior ou menor culpabilidade.
Segundo ele, caso haja a alteração, em caso de dúvida sobre o papel do acusado na multidão, o STF deveria aplicar a pena mais benéfica ao réu.
O advogado diz que, se uma nova lei for aprovada, nas ações transitadas em julgado, cabe à defesa pleitear uma revisão criminal, tendo que provar que a pena menor se aplicaria a seu cliente, enquanto nos casos ainda em curso, o tribunal poderia atuar por iniciativa própria.
À Folha o senador Alessandro Vieira afirmou que o projeto que ele apresentou teve a preocupação de se alinhar ao que historicamente já seria feito no direito brasileiro. Ele disse ainda que cada caso vai exigir uma análise frisando que, por isso, a conduta de cada acusado tem de ser individualizada e que acredita que ela seria feita com brevidade.