SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Em “O Que É Identitarismo?”, livro lançado pela editora Boitempo no ano passado, o psicanalista Douglas Barros se debruça sobre um dos temas mais nebulosos, disputados e debatidos pelo meio político e pela sociedade civil.

Barros defende uma tese original: o identitarismo não é uma escolha, mas uma imposição do Estado neoliberal.

O desenho de políticas públicas para minorias excluídas do capitalismo pós-fordista, segundo ele, teria o intuito de gerir essas identidades e impedir a ebulição de conflitos sociais que poderiam ameaçar o próprio sistema.

A solidificação de identidades fixas, porém, abre espaço para que o conflito entre por outra porta. É o que vemos, argumenta o psicanalista, com a ascensão de líderes como Donald Trump, Jair Bolsonaro e Viktor Orbán, que exploram o ressentimento dos que acreditam que grupos minoritários estão “furando a fila” ao acessar mais direitos.

Para Barros, a extrema direita contemporânea, apesar de criticar o identitarismo, é em si ultraidentitária.

“Os valores universais proclamados pela extrema direita são universais para um pequeno grupo. O grupo branco, patriarcal, heteronormativo”, diz ele em entrevista à Folha. “O outro, na visão deles, vai ser o identitário. O outro é sempre esse fantasma no qual se coloca o reflexo detestável do que se é.”

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*Folha – Na esquerda há quem diga que o identitarismo não existe -que é apenas um espantalho construído pela extrema direita. Ele existe, afinal?*

*Douglas Barros -* Existe, né? Tanto que se fala dele. A minha tese é que ele não existe como uma escolha, mas como uma forma impessoal de gestão dos conflitos sociais. Só que aí vem algo complicado: essa forma organiza identidades que aparecem como sólidas, fechadas e muito definidas. A identidade se marca por exclusão.

Quando você cria uma gestão baseada na organização de identidades, você cria condições para que essas identidades acessem direitos em detrimento de outras.

Na tentativa de evitar o conflito social, ele entra por outra porta –com o ressentimento diante do acesso aos direitos. É o que vemos na fala da extrema direita. Como se as pessoas excluídas do processo de modernização, de renda básica, de riqueza, estivessem agora furando a fila.

*Folha – O sr. defende que o neoliberalismo produziu o identitarismo do século 21. De que forma?*

*Douglas Barros -* Sobretudo por uma mudança no mundo do trabalho. Você sai de uma estrutura rígida, com horários fixos e organizada por leis trabalhistas. O neoliberalismo vai por outra premissa, que é a flexibilização, a competição e a busca por satisfação.

Isso tem como resultado uma substituição do espaço da solidariedade. O fato de que você trabalhava a vida toda num único lugar também gerava uma solidariedade entre seus pares. A flexibilização do trabalho vai ter outros impactos. Um deles é uma relação de mobilidade e competitividade baseada na ideia de meritocracia.

Só que precisa ter um acerto de contas com a dimensão histórica. Ficou muito visível, com a ruptura do mundo do trabalho fordista, que grupos excluídos estavam em desvantagem competitiva.

Essa transformação do modo de gerir consolidou formas de garantir também a competitividade desses grupos. Além de serem consumidores em potencial, eles também são fontes de conflitos políticos e sociais. A tentativa é sempre dirimir qualquer possibilidade de conflito. Daí a necessidade de criar categorias engessadas para organizar esses grupos no mercado.

*Folha – Mas como se criaram essas identidades fixas?*

*Douglas Barros -* A internet teve um papel revolucionário. Tem algo de formação de grupos e de pertencimento radicalmente novo.

De certo modo, havia algo estável em uma sociedade capitalista que não há mais. Tinha um pertencimento de classe que fazia com que essas identidades ficassem nubladas. Muitas vezes você não questionava qual sua posição na sociedade.

O que a gente assiste é uma mudança na nossa relação de ver o mundo, uma busca de ultraidentificação. Todo mundo quer uma identidade. É muito curioso como mesmo um laudo médico se torna hoje uma identidade. Talvez tenha sido o que nos restou.

Mesmo aqueles que se julgam fora de uma identidade estão se reivindicando como héteros, patriarcas, que devem defender os valores cristãos.

Ao mesmo tempo, ao afirmar a minha identidade, eu me contraponho à sua. A sua nega a minha, portanto, evitamos falar, discutir. Há algo também de um narcisismo que opera uma guerra de todos contra todos.

*Folha – A direita radical de Bolsonaro, Trump ou Orbán é também identitária?*

*Douglas Barros -* Sem dúvida. À medida que eles evocam a ideia de universalidade, eles dizem: “Mas essa universalidade é para nós, os brancos”. A primeira medida de Trump foi ultraidentitária, que é excluir todos os diferentes do território. Não é à toa que você vê bandeiras do lado branco da Guerra Civil. Eles estão imersos nessa lógica ultraidentitária, uma lógica protofascista.

Orbán pede uma limpeza étnica, uma consolidação de fronteiras. O diferente tem que ficar no lugar de fora. Elon Musk não estava dando tchauzinho –foi um aceno para as bases identitárias da extrema direita. Esses valores universais proclamados por eles são universais para um pequeno grupo. O grupo branco, patriarcal, heteronormativo.

*Folha – Os partidos políticos também abraçaram essa lógica? Candidatos que representam minorias se tornaram um produto na prateleira?*

*Douglas Barros -* Se você quer o espaço de poder no interior desse sistema, você vai rezar conforme a cartilha. Os partidos terão que se render de certo modo. É exatamente isso, um produto na prateleira. Por outro lado, isso não quer dizer que eles precisem se render [totalmente].

Quem impõe a política hoje é a extrema direita. Eles impõem o conflito, forçam os limites da institucionalidade.

A esquerda se rendeu a essa institucionalidade. Talvez uma saída seja a desconfiança com a institucionalidade tal como está posta. Voltar a repensar sua legitimidade. Isso parece que sumiu do horizonte da esquerda, mas seria importante para retomar o campo da política.

*Folha – Há saída da bolha do identitarismo?*

*Douglas Barros -* No horizonte ser realista é não enxergar saídas. Qual a resposta para o fracasso do neoliberalismo? Me parece ser o recrudescimento ao fascismo e às guerras.

Mas a história é muito mais dinâmica do que as formas que temos de avaliá-la e interpretá-la. Talvez uma boa resposta seja voltar a entender a política como conflito. Não o que a extrema direita impõe: um conflito de disputa de ideias e de visão de mundo.

Me acendeu uma esperança imensa a ideia do fim da escala 6×1, porque é também uma desmistificação da visão de mundo neoliberal. As pessoas estão morrendo no trabalho. Dizer que a vida não precisa ser só isso talvez seja uma das formas de recolocar o nosso campo no horizonte da política, no horizonte social e no horizonte das pessoas comuns. São essas pessoas que importam. Apesar de dizerem que meu livro é muito difícil e que elas não vão ler [ri].

RAIO-X

Douglas Barros, 38

Psicanalista e doutor em filosofia pela Unifesp (Universidade Federal de São Paulo). Autor de “O Que É Identitarismo?” (2024), “Guy Debord: Antimanual de leitura” (2022) e “Lugar de Negro, Lugar de Branco?” (2019).