SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A maternidade nunca esteve nos planos da empreendedora Marcella Oliveira, 34, até o nascimento da filha Helena, 6. O desejo de engravidar sempre foi da ex-companheira, ex-sócia e hoje consultora do seu negócio, Priscilla Paladim, 36.

“Priscilla sempre teve um sonho muito grande de ser mãe. Eu já não tinha isso tão aflorado, mas como me apaixonei, se tornou algo em comum”, diz. Mas tudo mudou ao segurar a filha pela primeira vez.

Ela deixou um emprego com carteira assinada na área de tecnologia da informação, passou a se dedicar à maternidade, especializou-se em marcenaria e, com Priscilla, criou a Tabular, empresa que produz móveis e brinquedos educativos de madeira para bebês e crianças na primeira infância.

“Quando a Helena nasceu minha vida mudou completamente. A gente optou pelo parto natural e eu fui a primeira pessoa a pegá-la. Nasceu direto no meu colo. Eu não sei explicar, mas eu olhei para ela e pensei: ‘Nasci para ser mãe’. Ela é, de fato, a razão de a Tabular existir”, conta.

A criação da empresa, no entanto, foi mais por necessidade financeira do que por opção, como ocorre com a maioria dos empreendedores no Brasil, segundo o Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoios às Micro e Pequenas Empresas).

Negócios de mulheres em dupla maternidade enfrentam preconceitos e falta de recursos por serem LGBTQ+. Dados de pesquisa do Sebrae realizada em 2024 com 2.020 brasileiros acima de 16 anos apontam 14,7 milhões de pessoas LGBTQ+ no país. No universo de empreendedores, são 3,7 milhões –9% dos que empreendem.

Para mais de 50%, o empreendedorismo surge como necessidade, seja de renda ou por não conseguirem se manter no mercado formal. Mas empreender sendo LGBTQ+ é mais difícil.

A pesquisa mostra que 39% de gays, lésbicas, bissexuais e pessoas não binárias disseram ter tido o produto desvalorizado por clientes após saberem de sua orientação sexual. No caso de transsexuais e travestis, o percentual sobe para 72%.

“São muitos os casos de pessoas que não querem trabalhar para eles, não querem comprar deles e não querem fornecer. O negócio está cada vez mais nichado, o que é bom e ruim, porque supre as necessidades de uma comunidade, mas fica restrito”, diz Margarete Coelho, diretora de administração e finanças do Sebrae.

“As pessoas LGBTQ+ empreendem por liberdade, para dizer: ‘Aqui eu posso ser eu mesmo’, mas muito por necessidade ou por sobrevivência, porque o mercado de trabalho formal não lhes garante plenos direitos, e quando se trata de um casal de mulheres, isso piora”, afirma.

Marcella e Priscilla sentiram na pele essa situação. Quando Helena nasceu, as duas tinham emprego com carteira assinada, mas só Priscilla conseguiu a licença-maternidade de 180 dias. Marcella ficou com a “licença-paternidade” de quatro dias e só conseguiu férias cerca de dez dias depois.

“Minha filha nasceu em uma sexta e tive que voltar ao trabalho na terça. Minhas férias foram dez dias depois, porque eles queriam que eu marcasse uma data exata, mas ela nasceu de parto natural, não tinha como saber quando seria”, diz.

A marceneira pediu demissão ao voltar das férias. Sem rede de apoio, pois moravam em Uberlândia (MG), longe dos parentes e amigos, precisou cuidar de Priscilla, que passou por cirurgia 30 dias depois do parto.

A má experiência afetou-as. Priscilla, especialista em exportação, mudou de área, fez pedagogia, especializou-se em neuropsicopedagogia e, depois da separação, seguiu como consultora da Tabular. Sem renda suficiente, nunca deixou o emprego CLT enquanto eram sócias.

“Empreender não é fácil. No começo, era uma avalanche de pedidos, eu nem dormia”, diz. A Tabular nasceu quando voltaram para a capital paulista.

Na nova casa, Marcella construiu os móveis do quarto da filha e passou a fazer brinquedos educativos, que chamaram a atenção de amigos e mães em dupla maternidade, até virar um negócio.

A falta de direitos e de visibilidade de mães LGBTQ+ foi o que motivou a escritora e empresária Daniela Arrais, uma das sócias da Contente.vc –plataforma de comunicação digital que produz conteúdo autoral e investigativo com base em dados–, a criar o coletivo Dupla Maternidade.

Inicialmente, era um grupo de WhatsApp organizado após o nascimento de Martin, hoje com quatro anos, fruto da união dela com a fisioterapeuta Laura Della Negra.

“Eu pensei: ‘Não quero que meu filho cresça vendo só essa referência de família [heteronormativa]’, e decidi fazer um grupo de WhatsApp. Eu conhecia só dez mães em dupla maternidade e, de repente, em nosso primeiro encontro presencial, eram 50 pessoas, depois cem. Hoje, somos uma comunidade com 1.300 pessoas”, conta.

A história de Dani, Laura e Martin começou em 2016, quando as duas se conheceram em um Carnaval em Olinda (PE). Dani, natural de Pernambuco, e Laura, de São Paulo, decidiram morar juntas na capital paulista poucos meses depois e sempre viveram como empreendedoras.

Casaram-se em 2018 e o assunto maternidade surgiu em seguida. “Laura é mais assertiva do que eu. Eu achava que tinha que ter um MBA antes de ter filho, mas ela achava melhor ter. Deu medo, mas eu disse: ‘Bora com medo mesmo’.”

O processo de reprodução assistida começou em 2019 e chegou a ser impactado pela pandemia de Covid-19 em 2020, quando a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) proibiu esses procedimentos. Martin nasceu em 2021, gestado pela fisioterapeuta.

Por ser empreendedoras, as duas tiveram pouco tempo de licença-maternidade e, sem contribuir com a Previdência Social, não receberam o salário-maternidade do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social).

“Essa questão da falta de direitos me joga exatamente quando Martin nasceu. Eu tenho um pouco de ressentimento em relação a isso. Tanto eu quanto Laura tivemos licenças curtas. Minha empresa estava crescendo naquele momento, minha sócia tinha acabado de ter filho também. Acho que a licença tinha de ser de seis meses para todas”, diz.

A ideia dela é transformar o coletivo em organização social para tentar avançar em direitos. Uma das motivações é a decisão de 2024 do Supremo de conceder licença de até 180 dias também à mãe não gestante em casais homossexuais –por lei, são 120 dias–, mas só para uma; a outra mãe só tem direito à licença-paternidade de quatro dias.

“São violências simbólicas, mas também são práticas”, diz Dani, lembrando que a maternidade tira mulheres do mercado de trabalho, com 50% das mães sendo demitidas até dois anos depois do nascimento do filho.

A advogada Priscila Arraes Reino, 52, e sua mulher, assessora de imprensa Denise Dalfarra, 61, mães de João, 7, e Luísa, 6, também tiveram que adaptar suas rotinas após a chegada dos filhos.

Priscila, que é especialista em Previdência Social, sempre contribuiu com o INSS e conseguiu a licença-maternidade de até 120 dias na adoção dos bebês, que chegaram em momentos diferentes.

Denise sempre foi empreendedora e estava com um contrato em uma prefeitura, em campanha eleitoral, quando João chegou. Ela, que nunca quis ser mãe, largou tudo ao ver as dificuldades da companheira tendo de assumir a criação de primogênito sozinha.

“A Priscila já tinha expressado o desejo, eu demorei um pouco para maternar e para ter uma decisão, não era um projeto meu ser mãe, mas é um projeto que tomou minha vida.”

João chegou em 30 de março de 2018 e Luísa, em 2 de agosto de 2019. Os dois são irmãos, mas quando adotaram João, a mãe deles ainda não estava grávida.

“A Luísa ainda não existia quando adotamos o João”, conta Priscila. Denise trabalha hoje com a mulher, que também é empreendedora. O ajuste foi feito para conseguir acompanhar a rotina das crianças.

Mesmo com tudo parecendo caminhar bem para elas, algumas burocracias ainda as afetam. “As crianças têm na certidão de nascimento a filiação das duas mães, mas não conseguimos, no cartão do SUS, colocar o nome das duas mães. Só existe espaço para mãe e pai”, diz Denise.

A adoção por afeto, sem papéis ou burocracias, também foi o que trouxe a maternidade para a vida da influenciadora Thaís Olardi, 35, que nunca pensou em ter filhos. “Como antes eu trabalhava com parto e amamentação, já tinha uma ideia clara do que era ser mãe. Nunca foi meu sonho de ‘princesa'”, diz.

Foi justamente no trabalho como doula e consultora de amamentação que conheceu Gabriela Gavioli, 31, mãe de Bernardo, 10, e Miguel, 9. As duas começaram a namorar, mas, no início, Thaís não costumava se envolver na criação dos meninos, que têm um pai participativo.

Na pandemia, chegaram a morar os três juntos –Thaís, Gabriela e seu ex-marido–, como forma de proteger as crianças do ir e vir entre as namoradas. Foi então que tudo mudou e Thaís virou mãe.

“Acabou que a gente precisou morar juntas nessa situação da pandemia e eu fui me envolvendo com a rotina de todo mundo. A princípio, eu só fazia passeio, ajudava quando precisava, mas, aos poucos, eles foram se apegando a mim e eu me apegando a eles”, conta ela sobre o momento que virou mãe dos meninos.

Hoje, Thaís e Gabi, moram em uma pequena cidade ao lado de Fortaleza (CE), criam os meninos sem ajuda do pai, que voltou para a capital paulista e já foi sócio das duas em uma pizzaria no Ceará; negócio que fechou em fevereiro deste ano.

Gabriela é formada em gastronomia e, agora, as estão em transição de carreira, enfrentando mais uma vez os desafios de empreender. “A gente não está conseguindo se manter exclusivamente deste novo trabalho, mas fizemos uma reserva financeira”, conta Thaís.

Morar no interior de Minas Gerais e seguir empreendendo e exercendo a dupla maternidade de Bê, 3, foi a escolha da ex-dançarina do Faustão, Karina Barros de Oliveira, 27, bailarina e artista autônoma, e da administradora de empresas Camila Benfica, 36, para dar uma infância-raiz ao filho.

As duas moram em Santa Rita de Jacutinga, onde Camila administra a Pousada Jacutinga, arrendada por ela. Hoje, não são sócias, mas tiveram uma sociedade em um pet shop na capital paulista, quando Bê nasceu.

As duas se conheceram por acaso, em uma festa em Volta Redonda (RJ), pouco antes do início das aulas. Na faculdade, descobriram ser colegas de sala, e dali nasceu uma amizade, que evoluiu para um namoro e, em seguida, para o casamento.

O relacionamento ficou sério quando Karina deixou a faculdade para morar em São Paulo após ser aprovada para fazer parte do elenco do Domingão do Faustão. Com a distância e a saudade, Camila resolveu largar tudo e ir morar com a até então namorada.

Passaram a falar em ter filhos, decidindo que quem doaria o óvulo seria a Camila e Karina gestaria, já que esse sempre foi seu sonho. O processo de fertilização teve altos e baixos, e quase desistiram quando uma doença levou Camila a fazer uma cirurgia.

Passaram pela pandemia, conseguiram a gravidez, mas quando o filho nasceu, as dificuldades das empreendedoras ficaram maiores. Karina tentou se ausentar o pet shop para cuidar de Bê em uma licença-maternidade custeada por elas, mas precisou trabalhar a distância, mesmo tendo treinado uma pessoa para ficar em seu lugar.

A dificuldade de conseguir dar mais atenção para o filho foi o que as fez repensar o que queriam para o futuro. Foi então que decidiram empreender no interior de Minas, na cidade em que Camila nasceu e na pousada onde as duas se casaram.

Agora, moram perto dos parentes de Camila e a uma hora da família de Karina, que reside em outra cidade. Camila, que nunca pensou em ser mãe, foi quem mais quis mudar de vida quando viu que não tinha muito tempo para o filho e a família.

Karina, que sempre sonhou a maternidade, topou na hora. Hoje, elas celebram não só o Dia das Mães, mas o pé na terra, o contato com as coisas que para elas importam e a criação de muitas memórias afetivas.