SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Mateus Aleluia não canta –ele evoca. Último remanescente do trio Os Tincoãs, o artista segue enraizado na musicalidade do Recôncavo Baiano, território de predominância negra. É das cantigas sagradas dos terreiros de candomblé e da pulsação do tambor que ele extrai inspiração para compor canções que transitam entre espiritualidade, ancestralidade, filosofia e consciência racial.
Prestes a completar 82 anos, Aleluia retorna, após cinco anos de seu último disco, “Olorum”, para lançar o quinto álbum de sua carreira solo –o primeiro batizado com seu próprio nome. Com direção musical, arranjos e regência de Tadeu Mascarenhas, “Mateus Aleluia” chegou às plataformas digitais nesta sexta-feira (9) com um trabalho que, segundo o artista, canta o amor de suas mais diversas formas.
“Falo das minhas divagações. Canto da forma que eu gosto de cantar, sem compromisso, sem me apegar a regras, mas me apegando sempre ao sentimento”, afirma.
Para Aleluia, seu disco prova que a maior demonstração de afeto da natureza é a existência humana. “O amor também é essa manifestação. Essa espontaneidade que sai de nós. Às vezes, de uma forma que a gente julga carinhosa. Às vezes, sai de uma forma bruta. Tudo é amor.”
Essa visão remete aos preceitos do candomblé, para o qual a música é um elemento fundamental para conexão com o sagrado, pois cria um ambiente propício para a comunicação com as divindades, os orixás, que representam elementos da natureza, como os rios de Oxum ou as matas de Oxóssi. É também uma herança que carrega da obra d’Os Tincoãs que retrata, por exemplo, “O Lamento das Águas” como o choro de Yemanjá.
Seu novo trabalho nasce da compreensão de que amar é, acima de tudo, reconhecer-se como parte da vida, da dor e do prazer, da luz e da sombra. Para ele, o amor não é apenas o que une indivíduos, mas o que conecta o ser humano à natureza, ao cosmos, ao mistério. “No amor não mando, me manda o amor / quando o amor me manda, eu sigo e vou”, canta em “No Amor Não Mando”, faixa de abertura do disco.
A dimensão cósmica e filosófica da sua música, segundo ele, está associada à sua terra natal, Cachoeira, na Bahia. Vindo do Recôncavo, Aleluia é parte de uma linhagem de artistas como Caetano Veloso, Maria Bethânia, Dona Edith do Prato, Dona Dalva Damiana e Roberto Mendes.
Para ele, o Recôncavo é mais do que um território geográfico. “É um ponto de força, um lugar onde se forma uma atmosfera própria de introspecção, o grande útero da mãe natureza”, diz o artista, que recorda a passagem da artista Marina Abramovic por Cachoeira, quando ela gravou parte do filme “Espaço Além” durante uma visita à Mãe Filhinha. A obra traçava um panorama da espiritualidade no Brasil.
Cachoeira, diz ele, possibilita “um mergulho profundo dentro de si onde ele reencontra sua essência”, ainda que, como ele reconhece, esse mergulho nem sempre seja confortável. “A gente mergulha e vê tudo lá embaixo, mas tem que subir para respirar.”
Essa devoção ao desconhecido é também parte do seu próprio nome, como ele lembra na canção “Oh, Música!/Aleluia”, em que canta “Aleluia, foi este forte nome que meu pai me deu/ louvor celeste, presente que me dava sendo eu Mateus/ bombardino, sublime instrumento quer meu pai tocou/ hoje na música, eu mostro a herança que o pai me deixou”.
Há outras heranças retratadas por Aleluia em seu novo disco. Em “Acalanto”, canção na qual se refere à sua mãe, ele fala sobre seu próprio nascimento e um “cheiro de senzala”. “Essa lembrança não me ‘escraveja’. Me libertou desde o útero”, diz.
A consciência negra de Aleluia é um compromisso que parte da ancestralidade em direção ao futuro, segundo ele. Ela foi cultivada especialmente nas duas décadas que ele viveu em Luanda, de 1980 a 2002. Longe do Brasil, aprofundou seus estudos em música e religião, contratado como pesquisador pelo governo angolano.
“Eu vim da África, mas estou no Brasil. Já não sou mais africano. Sou brasileiro, sou um afrodescendente. Faço parte de uma diáspora. Tenho muito bem delineado essa realidade que me acompanha.”
Seu discurso aponta para a urgência da organização da população negra para a eliminação das desigualdades. “Não vamos dizer que aqui existe uma democracia a étnica, porque não existe. Mas que nós vamos ter que lutar para que se crie um ambiente de conciliação, porque essa é a única forma de a gente realmente levar esse país daqui a 200 anos a uma condição de equilíbrio.”
Neste sentido, a canção “Pantera Negra” é como um manifesto antirrascista. “Salte livre, minha pantera, filinês de fera/ porte de guerreira, passos de rainha/ garras que me prendem,/ doce liberdade.”
Com capa ilustrada por Athos Sampaio e uma edição em vinil prevista para o segundo semestre, o álbum “Mateus Aleluia” traz, essencialmente, a preocupação do artista de equilibrar o que é terreno e o que é divino. “O sagrado ou profano é como o positivo e o negativo. É uma necessidade, uma lei física. Penso que é mais ou menos como estou hoje. Um dia crendo, outro dia não crendo. Outro dia afirmado, outro dia ‘desafirmado’. Sempre em uma corda-bamba. Em uma corda-bamba, se você para, você cai. Para poder ficar numa corda-bamba, você anda.”
Mateus Aleluia
Onde: Nas plataformas digitais
Autoria: Mateus Aleluia
Produção: Mateus Aleluia, Tadeu Mascarenhas e Tenille Bezerra
Gravadora: Independente