FOLHAPRESS – Talvez seja o caso de repensar aspectos da política oficial para o cinema no Brasil. De uns tempos para cá, dezenas de filmes são despejados num mercado que não os acolhe e onde, quando lançados, não têm nenhuma chance nem lugar. Não são devidamente distribuídos, não serão vistos pelos espectadores que buscam e permanecerão como uma espécie de zumbi até que alguém, por acaso, os resgate do limbo.
Nesse bolo está, certamente, o pequeno “Lispectorante”. Passemos pelo trocadilho infeliz que alude à capacidade de algo imaterial de provocar a expectoração de sofrimentos, mágoas, dores em geral. É o tipo de remédio, em todo caso, que Glória, papel de Marcélia Cartaxo, precisa. Ela é a mulher que, após o divórcio, e em crise pessoal profunda, volta à sua terra e à sua tia Eva.
O convívio com imagens familiares parece de algum modo animá-la. No entanto, existe a sombra de um parente, Zacharias, aparentemente um agiota que vive de explorar as dificuldades da tia e prepara com alguma impaciência a tomada do imóvel em que ela vive.
Glória perambula por Recife, ameaça um filme turístico, mas algo se transforma quando encontra um simpático artesão que perambula pelas ruas onde vende sua produção. Por ele se encanta, e os dois namoram.
Esse encontro amoroso parece ser o único sossego na vida de Gloria, que passa o tempo entre dívidas, aflições, desemprego etc. O que compensa é seu temperamento alegre, algo ingênuo, aberto a tudo que vê. Ela suporta as desditas com espírito. E as desditas não são poucas. Há aquelas que aparecem na forma de delírios -ou sonhos, ou ambos- inquietantes.
Alguns momentos chamam a atenção, como quando Gloria tenta empurrar um coelho, um tipo de brinquedo infantil, porém estranho, excessivamente grande em relação aos outros objetos na loja. A imagem parece tomada por uma estranha doença.
Mais tarde, Gloria terá a alegria de receber a casa da tia Eva como herança e, em seguida, a decepção de saber que Zacharias quer tomá-la, com objetos e lembranças. É um pouco essa vida sem eira nem beira, que bordeja uma crise existencial e a penúria econômica, que parece o centro da ação.
Filme de afetos frequentemente limitado pela timidez da produção, facilmente esquecível, “Lispectorante” talvez tenha pensado em fazer uma homenagem a Clarice Lispector, é óbvio, mas é difícil acreditar que tenha se aproximado de algo parecido. O título indigesto já parece indicar algo assim.
Em compensação, salva-se a sensível imagem felliniana, no final do filme, com as personagens se afastando por uma quase ruela da cidade. Sente-se mais Fellini do que Clarice no filme, é verdade.
Talvez seja o caso de saber se a delicadeza da feitura será capaz de atrair o público feminino para este trabalho dirigido por Renata Pinheiro, contornando a timidez do lançamento, a limitação do orçamento e as evidentes fragilidades de uma realização, no entanto, pautada por certa delicadeza e que tem muito a ver com a imagem de Marcélia Cartaxo.
Lispectorante
Onde Nos cinemasClassificação 14 anos
Elenco Grace Passô, Marcelia Cartaxo, Pedro Wagner
Produção Brasil, 2024
Direção Renata Pinheiro
Avaliação Regular