SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Índia e Paquistão faziam parte do mesmo território sob domínio britânico até 1947, quando se tornaram independentes do Reino Unido. Divididos, passaram a disputar a região fronteiriça da Caxemira, onde nascem rios essenciais para ambos. As tensões entre as duas potências nucleares voltaram a aumentar depois de um ataque terrorista na Caxemira indiana, que matou 26 turistas hindus em 22 de abril.

A polícia indiana afirma que o ataque foi cometido por paquistaneses. A Índia, de maioria hindu, acusa o Paquistão, de maioria muçulmana, de financiar o terrorismo na Caxemira.

No dia seguinte ao ataque, a Índia suspendeu o acordo que regulava o uso compartilhado dos rios entre as duas nações desde 1960. O Tratado das Águas do Rio Indo sobreviveu a duas guerras entre os dois países. Agora, além de romper com o acordo pela primeira vez, o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, fechou a única passagem terrestre entre os países.

Em reação, o Paquistão declarou que qualquer desvio das águas será considerado um ato de guerra e rejeitou a saída indiana do tratado. Desde então, o governo do Paquistão expulsou os cidadãos indianos de seu território, e o governo da Índia expulsou os paquistaneses. Ambos os países fecharam os espaços aéreos. Soldados dos dois lados trocaram tiros ao longo da fronteira altamente militarizada.

E nesta sexta-feira (9), os dois países deram mais um passo em direção a uma guerra aberta depois de ataques mútuos contra bases aéreas. Islamabad disse estar lançando uma operação militar contra o país vizinho após ser alvo de ataque de mísseis, e Nova Déli registrou explosões na fronteira e falou em “ataque massivo” de drones.

QUAIS AS ORIGENS DO CONFLITO ENTRE A ÍNDIA E O PAQUISTÃO?

Os Estados vizinhos surgiram a partir da dissolução da Índia britânica, com a conquista da independência nos anos 1940. Desde então, há problemas na região fronteiriça -ambos os países reivindicam a posse da Caxemira e disputam o controle das águas.

A diversidade religiosa na região é muito anterior à colonização. Antes da divisão, a maioria da população era hindu. Os muçulmanos representavam cerca de um quarto do total, que incluía sikhs, budistas, cristãos e membros de outras religiões. Durante o período colonial, os britânicos exacerbaram e institucionalizaram essas diferenças, que têm caráter religioso, não étnico, explica a socióloga Mariana Faiad, que é professora na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e na Universidade de Sorocaba (Uniso).

COMO FOI FEITA A DIVISÃO?

Os líderes da luta pela independência Mahatma Gandhi (1869 – 1948) e Jawaharlal Nehru (1889 – 1964) defenderam a criação de uma Índia unida e multirreligiosa. No entanto, um funcionário britânico, Cyril Radcliffe -que passou apenas três meses na região- traçou as novas fronteiras entre Índia e Paquistão em 1947.

Com isso, o subcontinente indiano foi dividido. A parte central e sul, onde havia maioria hindu, tornou-se a Índia, e as partes noroeste e nordeste, onde a maioria era muçulmana, formaram o novo Estado do Paquistão.

A divisão desconsiderou que a população hindu e muçulmana estava dispersa por todo o território e forçou deslocamentos. “A partilha da Índia e do Paquistão gerou a maior movimentação humana da história até então, com cerca de 15 milhões de pessoas desalojadas e mais de um milhão de mortos”, afirma Faiad.

O QUE É A CAXEMIRA?

A Caxemira é a região da fronteira entre Índia e Paquistão. Está localizada nos Himalaias, onde fica a bacia do rio Indo, fonte fundamental de água para todo o entorno. Com a partilha, a região foi impedida de se tornar independente. Os britânicos determinaram que, por voto popular, os caxemirenses escolhessem se queriam fazer parte da Índia ou do Paquistão.

Apesar de a maioria da população da Caxemira ser muçulmana, as elites governantes eram hindus. Parte da região foi anexada pelo Paquistão, e o restante se integrou à Índia -mas sua autonomia foi preservada em uma cláusula Constituição.

Assim que conquistaram a independência, em 1947, ambos os países entraram em guerra reivindicando a totalidade da Caxemira. A fronteira atual foi estabelecida com base nos territórios dominados pelas tropas naquele período. A parte que ficou na Índia se tornou o único estado com maioria muçulmana do país.

Em 2019, o premiê Narendra Modi revogou a autonomia da Caxemira indiana. Ele permitiu a compra de terras por estrangeiros e o leilão de áreas para mineração. As políticas de Modi impulsionam o nacionalismo hindu como eixo central da política indiana. Desde então, cresceram os ataques contra muçulmanos e a radicalização de setores islâmicos, agravando tensões religiosas.

QUAIS OS PONTOS DE DISPUTA?

Desde a partição, os países disputam a Caxemira. Houve três guerras desde então: em 1947 e 1965, disputando a região, e em 1971, quando a Índia apoiou a independência de Bangladesh, que era parte do território não contíguo do Paquistão.

“A Caxemira é a região mais militarizada do mundo, proporcionalmente entre civis e Forças Armadas -mais até do que a Palestina”, diz Faiad, da UFScar. Os dois países divergem sobre o uso da água dos rios que cruzam a fronteira e têm armas nucleares.

“O Tratado das Águas do Rio Indo sobreviveu a guerras violentas. Nenhum primeiro-ministro da Índia ousou mexer nele. A decisão de Modi [de suspender o uso compartilhado das águas] é cruel, porque coloca em risco a sobrevivência de 240 milhões de pessoas no Paquistão”, afirma a socióloga.

O tratado, mediado pelo Banco Mundial, dividiu o Indo e afluentes entre os dois países, a Índia recebeu o uso da água de três rios orientais, enquanto o Paquistão recebeu a maior parte dos três rios ocidentais.

“O conflito na Caxemira é menos sobre religião e mais sobre acesso a recursos naturais estratégicos, como a água dos rios que nascem nos Himalaias”, acrescenta Faiad.

QUAL O ESTOPIM?

No dia 22 de abril, um ataque em Pahalgam, na Caxemira indiana, matou a tiros 26 turistas indianos hindus. O grupo Kashmir Resistance a princípio reivindicou a autoria do atentado em uma postagem no Telegram. Este grupo islamista é o braço na Caxemira indiana do Lashkar-e-Tayyiba, designado pela ONU como terrorista e aliado do Talibã.

A mensagem criticava a migração para a Caxemira indiana de mais de 85 mil pessoas de outras regiões do país. Alertava para uma “mudança demográfica” na área de maioria muçulmana, consequência do fim da autonomia em 2019.

Depois, o mesmo grupo afirmou em uma postagem no X que “nega inequivocamente” envolvimento no ataque e atribuiu a postagem anterior a uma “intrusão cibernética”.

A polícia indiana atribuiu o ataque a cidadãos paquistaneses, mas não apresentou provas. Três suspeitos foram identificados, dois deles paquistaneses.

A Índia acusa regularmente o Paquistão de apoiar insurgentes armados, e trata toda insurreição na região como terrorismo patrocinado pelo vizinho. O país muçulmano nega envolvimento e afirma apoiar o direito dos caxemirenses à autodeterminação. O ministro da Defesa do Paquistão acusou a Índia de planejar ataques em cidades paquistanesas e ameaçou represálias: “Se a Índia atacar, responderemos olho por olho”, disse.