SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Na imensidão verde da reserva extrativista do Médio Juruá, no coração da Amazônia, muitas mães vivem um dilema. O desejo de ver os filhos estudando contrasta com a necessidade urgente de contar com a ajuda dos jovens nas atividades extrativistas que garantem o sustento da família, entre elas o manejo sustentável do pirarucu. Essa realidade acaba dificultando a continuidade dos estudos e impõe desafios diários para conciliar trabalho e educação.

Silvilene Maria, 30, extrativista há oito, mora com o marido e a filha Ana Beatriz, 14, a três horas de barco do município de Carauari (AM), que fica na região do Médio Juruá, a cerca de 825 quilômetros de Manaus. O manejo do pirarucu é a principal fonte de renda da família, uma cadeia produtiva que une organização social, controle do território, exploração racional de recursos naturais e geração de renda.

Longe dos garimpos e das frentes do desmatamento, a região aposta nas cadeias produtivas para viver em harmonia com a floresta em pé. No entanto, um desafio comum entre os jovens das comunidades extrativistas é o equilíbrio entre o trabalho tradicional e a educação formal, uma vez que enfrentam dificuldades logísticas e de acesso ao ensino.

Durante a temporada de pesca, geralmente entre outubro e novembro, Silvilene e a família passam até duas semanas acampados em um barco, a cerca de duas horas de casa, dedicando-se à limpeza e processamento do pirarucu.

No restante do ano, a família se dedica à coleta e ao processamento de sementes de plantas como andiroba e murumuru, que são utilizadas para extrair óleo e produzir sabonetes e cremes, gerando uma renda extra.

A rotina é bastante cansativa, diz a mãe, com trabalho manual intenso e longos dias fora de casa, muitas vezes sem conseguir fazer refeições no horário adequado.

A filha, Ana Beatriz, ajuda nas atividades após a escola, principalmente na lavagem e secagem das sementes, e também participa do manejo do pirarucu, aprendendo a eviscerar -limpar- os peixes. No entanto, durante o período de pesca, ela não consegue frequentar as aulas, uma vez que precisa acompanhar os pais até a região da pesca, o que gera a necessidade de reposição do conteúdo.

“É um trabalho cansativo, mas é o que temos para garantir o sustento da família. Minha filha me ajuda muito, principalmente na época do pirarucu e na coleta das sementes. Ela aprende desde cedo, mas eu sempre digo para ela estudar, porque quero que tenha mais oportunidades”, conta Silvilene.

Ela incentiva Ana Beatriz a sonhar alto, apoiando seu desejo de cursar medicina, mas sabe que, por enquanto, a ajuda da filha nas atividades extrativistas é indispensável.

“A rotina do extrativismo é muito difícil, por isso quero que minha filha tenha oportunidades, mas sem esquecer o valor do nosso trabalho. Eu falo para ela: ‘Filha, se você quer ser médica, estude. Mas se quiser continuar no extrativismo, faça com amor, porque é um trabalho bonito, mas muito difícil’. O importante é que ela seja feliz e tenha dignidade.”

Sirlangela Bispo, 40, também divide o tempo entre a roça, a extração de seringa e o manejo do pirarucu, junto com os filhos João Vitor, 21, Vitória, 20, Raiane, 17, e Raian, 2. Para eles, o dinheiro do pirarucu é essencial. Em apenas uma semana de pesca, a renda obtida ajuda a sustentar a família por vários meses.

Sirlangela Bispo e os quatro filhos. Da esquerda para a direita: João Vitor, Sirlangela, Raian, Raiane e Vitória. Mesmo após o fim da temporada do pirarucu, o trabalho continua com o plantio na roça e a extração de seringa, atividades que complementam a renda e fazem parte de uma tradição passada de geração em geração.

Sirlangela também enfrenta o dilema entre o desejo de proporcionar uma vida melhor para os filhos e a necessidade de contar com a ajuda deles nas tarefas diárias.

A filha Vitória conseguiu concluir o ensino médio, mesmo enfrentando a necessidade de morar longe para estudar e trabalhar. Agora, estuda uma maneira de cursar o ensino superior, uma vez que a faculdade mais próxima fica a três horas de barco.

Já João Vitor precisou interromper os estudos para ajudar a mãe depois que o pai adoeceu. Ele quer seguir nos estudos, mas não quer deixar a família na mão, segundo a mãe.

“Quero que meus filhos tenham uma vida melhor, mas a realidade exige que todos ajudem em casa”, diz Sirlangela.

O papel das mulheres nessas comunidades é fundamental não apenas para a sobrevivência das famílias e incentivo aos estudos, mas também para a organização social local. Elas lideram associações, coordenam a produção e garantem que as atividades sejam realizadas de forma sustentável, além de transmitir o conhecimento tradicional às novas gerações.

Nesse contexto, algumas instituições têm contribuído para fortalecer economias e comunidades da sociobiodiversidade em áreas protegidas, como a região do Médio Juruá.

É o caso do programa SustentaBio, uma parceria público-privada entre o ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) e o Fundo Vale, associação sem fins lucrativos mantida pela mineradora Vale.

Entre os objetivos do programa, está a melhoria na qualidade de vida das populações e o aprimoramento de infraestrutura, qualificação técnica e abertura de mercados para a comercialização da produção.

Até 2027, o programa deve investir cerca de R$ 24 milhões em 14 áreas protegidas, que juntas somam mais de 10 milhões de hectares de floresta amazônica nos estados do Amazonas e Pará.

“Trabalhamos para garantir o acesso das populações tradicionais às políticas públicas e à promoção das economias da sociobiodiversidade. O desafio é adaptar as políticas para a realidade dessas famílias, que dependem do trabalho coletivo e da diversidade de atividades para sobreviver”, afirma Tatiana Rehder, coordenadora geral de acesso a Políticas Públicas e Promoção das Economias da Sociobiodiversidade do ICMBio.

Rehder afirma que o acesso à educação formal é um desafio constante para essas comunidades. Isso porque os jovens precisam dividir seu tempo entre os estudos e o trabalho, o que torna essencial a adaptação das políticas públicas para atender às especificidades desses territórios de uso coletivo.

“Muitos jovens das comunidades extrativistas, após concluírem a educação formal, retornam às suas regiões de origem para aplicar os conhecimentos adquiridos e contribuir para a melhoria dos processos produtivos locais”, diz.

Segundo Rehder, o retorno desses jovens capacitados traz inovação e fortalece as atividades tradicionais, ajudando a profissionalizar o extrativismo e a promover a sustentabilidade econômica e ambiental das comunidades.

“A gente vê um aumento expressivo da participação de mulheres e jovens nessas associações, e isso é fundamental para a profissionalização e continuidade das atividades sustentáveis”, afirma Patrícia Daros, diretora do Fundo Vale.

Para Daros, apoiar a atuação de mulheres e jovens é essencial para manter a floresta em pé e promover justiça social.

“O fortalecimento dessas cadeias produtivas e das organizações comunitárias é fundamental para combater o desmatamento, valorizando quem realmente a preserva: as comunidades locais.”