(FOLHAPRESS) – De acordo com Paulo Tiné, Garoto “foi além de sua época”, antecipando “a estrutura harmônica principal da música popular brasileira a partir da bossa nova”. Nascido em São Paulo, em 1915, Aníbal Augusto Sardinha morreu há sete décadas, pouco antes de completar 40 anos.
Neste ano se celebram, portanto, os 110 anos do nascimento do violonista e compositor, mas, mais importante, uma outra data redonda, os 70 anos de sua morte, permite que, em breve, a sua obra entre em domínio público.
É natural, portanto, que surjam homenagens. É o caso de “Lembrando Garoto”, álbum recém-lançado pelo trio formado pelo pianista Cristóvão Bastos, o violonista e guitarrista Romero Lubambo e o saxofonista e flautista Mauro Senise. Com muita improvisação, os três cariocas elevam os temas do paulista a “standards” da música brasileira, além de apresentarem duas composições autorais inspiradas por seu estilo.
Cinco peças são clássicos desse repertório, a começar por “Duas Contas”, a faixa de abertura, que tem bela exposição violonística de Lubambo e solos dos três. Desde o início fica patente como Cristóvão equilibra sem conflito o piano com o violão, em timbragem perfeita.
Já em “Jorge do Fusa”, um dos choros de Garoto mais tocados e gravados pelos violonistas eruditos, o trio “orquestra” a desafiadora frase de 16 notas (as fusas) encaixadas em dois tempos. O violão soa um tanto ríspido na exposição do tema, se soltando depois em improviso decidido.
“Lamento do Morro”, samba que poderia ter sido escrito por Radamés Gnattali, é a faixa que mais desenvolve as improvisações -Lubambo fluentíssimo, Bastos sempre elegante e Senise com seu característico fraseado ao sax, presente em tantas gravações de referência.
Em “Tristezas de um Violão”, também conhecida como “Choro Triste Nº1”, Lubambo expõe a primeira seção do tema como se seguisse fielmente a partitura para violão solo. Bastos e Senise, na flauta, entram na parte B, já soltos do tema, a esperar o violonista disparar seu improviso matador antes de retomar a melodia principal, agora encorpada pelo piano.
“Gente Humilde”, sua composição mais famosa, que nasceu instrumental nos anos 1950 e receberia letra de Vinicius de Moraes e Chico Buarque 20 anos mais tarde, é tratada de forma mais convencional, mas sempre com bom gosto.
O álbum traz também peças menos conhecidas, como “Infernal”, “Recordações”, “Vamos Acabar com o Baile” e “Benny Goodman no Choro”.
Um dos melhores arranjos é o de “Infernal”, choro de 1943 que tem como destaque, nesta versão, o final dobrado por sax e violão. A exposição se dá apenas a cargo do sax com acompanhamento de piano, o violão entrando apenas na segunda parte, procedimento repetido em “Recordações”, repleta de contrastes de andamento e intenções.
Na nostálgica e virtuosística “Vamos Acabar com o Baile” -improvável síntese entre Nazareth e Pixinguinha-, Senise sola com o piccolo e, em “Benny Goodman no Choro”, Lubambo lembra a guitarra elétrica.
Garoto acompanhou Carmen Miranda por uma temporada inteira nos Estados Unidos em 1939 e 1940. Com ela e o Bando da Lua, ele tocou de Nova York a San Francisco, passando por Detroit e Chicago.
Mas, de uma forma mais ampla, sua obra somente ganharia o mundo violonístico internacional em 1991, a partir do minucioso trabalho de Paulo Bellinati, que lançou dois álbuns de partituras, transcritas a partir das gravações caseiras originais do próprio Garoto. Por isso, hoje, obras do paulistano são normalmente estudadas e apresentadas como parte dos programas de violão clássico em conservatórios e faculdades em todos os continentes.
O próprio Bellinati, aliás, acaba de revisitar Garoto com o álbum “Paulo Bellinati Trio Toca Garoto”, em que atua ao lado do eclético violonista Daniel Murray e do mestre das sete cordas Swami Júnior.
Voltando a “Lembrando Garoto”, nas duas faixas autorais, “Theme I”, um samba de Lubambo, e na faixa título, uma composição de Bastos, Senise leva ao limite -na flauta e no sax alto- sua arte de articulações móveis e fluidas.
LEMBRANDO GAROTO
Avaliação Ótimo
Onde Disponível nas plataformas de streaming
Autoria Cristóvão Bastos, Romero Lubambo e Mauro Senise
Gravadora Biscoito Fino