WASHINGTON, EUA (FOLHAPRESS) – O nascimento de Victoria é um milagre. Todos os indígenas vivos após os anos 1900 são um milagre, explica um dos narradores do romance “Estrelas Errantes”, que acompanha diferentes gerações de uma família cheyenne nos Estados Unidos, sob constante ameaça de extermínio.

Esse é o segundo livro do escritor americano de origem indígena Tommy Orange, de 43 anos. Falando em estrelas, a dele é ascendente. Seu romance de estreia, “Lá Não Existe Lá”, foi finalista do prêmio Pulitzer em 2019, consagrando-o como uma das novas promessas da literatura em língua inglesa.

O romance “Estrelas Errantes”, de 2024, é ao mesmo tempo um prelúdio e uma continuação de “Lá Não Existe Lá”. Conta o que aconteceu com a família dos protagonistas antes e depois do livro, expandindo seu universo. É um texto independente, porém, que pode ser lido em separado.

À Folha de S.Paulo, Orange conta que teve a ideia quando, fuçando nos arquivos, se deparou com a história do massacre e aprisionamento da tribo cheyenne, de que ele e seus personagens fictícios fazem parte. “Era um pedaço da história sobre o qual eu não tinha nem ideia.”

A descoberta serviu para contextualizar sua ficção em uma sequência mais longa de extermínios. A aniquilação indígena não é só física, mas também simbólica –afinal, ele próprio não conhecia o episódio, o que demonstra o quanto a história de seu povo já foi apagada da memória social.

O livro acompanha, por exemplo, um personagem cheyenne que é forçado a estudar em uma espécie de cadeia voltada a assimilar pessoas indígenas à sociedade mais ampla dos EUA. “A função da assimilação”, afirma Orange, “era dissolver as tribos, o que matou as suas histórias”.

O Estado e as instituições de ensino partiam do princípio de que os indígenas não tinham nada a contribuir para a civilização. “A ideia de que eram bárbaros servia para degradá-los”, diz. Seus valores foram reprimidos, com o que suas experiências perderam lastro.

Daí o milagre do nascimento da pequena Victoria, algum tempo depois —uma criança indígena contra todos os prognósticos. Orange explora, por meio dessas diferentes gerações, os desafios de manter uma cultura em um sistema que tenta apagá-la, por considerá-la inferior e obsoleta.

Orange usa diversos narradores e pontos de vista no romance, no que é, de certa maneira, também um aceno aos valores indígenas, que privilegiam o coletivo em detrimento do individual. “Essa perspectiva comunal, oposta à glorificação individual, é parte da nossa cultura nativa”, afirma. Seu livro não tem heróis.

O texto absorve, também, maneiras de ser. Orange nunca é explícito e evita os lugares-comuns. Mas o leitor atento percebe, por exemplo, que seus personagens usam os lábios, e não os dedos, para apontar —o que faz parte de um gestuário indígena. Usam metáforas também desse universo.

Orange tem mestrado em artes com enfoque em culturas indígenas, de onde extrai, sem errar a mão, essas referências. “A maneira mais interessante de dar camadas a um texto é criar diferentes pontos de acesso”, diz. Há o enredo na superfície e, abaixo dele, toda uma textura.

Também sob a superfície está a ideia de que nós somos o resultado das decisões tomadas por nossos antepassados, que nos afetam mesmo quando não os conhecemos. É como um personagem diz, na metade do romance: famílias são peças de dominó caindo umas em cima das outras.

Orange conta que criou essa imagem a partir de um sonho que teve quando era mais jovem, que muito o impressionou. Uma outra metáfora com que sonhou foi a de um garoto encontrando uma aranha em sua perna. O onírico é um outro elemento de sua cultura que o escritor incorporou.

Não são ideias apenas abstratas. Dá o exemplo de seu pai, nascido de um relacionamento extraconjugal. Sua tribo o considerava apenas meio cheyenne, o que fez de Orange um quarto cheyenne, e seu filho, um oitavo. É comum, nos EUA, indígenas e autoridades calcularem as origens assim para determinar, por exemplo, o acesso a políticas públicas.

Até alguns anos atrás, segundo o escritor, sua tribo não aceitava quem não fosse ao menos um quarto cheyenne. “A maneira com que meu pai nasceu quase significou que meu filho não faria parte da nossa tribo, o que afetaria sua identidade e a identidade dos seus filhos”, Orange afirma. Peças de dominó.

A ideia do milagre de ser indígena é, na obra, uma forma de resistência. Um modo, em outras palavras, de contrariar as políticas públicas e a opinião coletiva de que as pessoas indígenas não fazem parte da sociedade americana. É algo pelo qual os protagonistas de Orange lutam.

Há, nesse meio tempo, uma figura destoante na constelação das “Estrelas Errantes”. Uma das epígrafes do livro é da brasileira Clarice Lispector (“é em mim que tenho de criar esse alguém que entenderá”).

Orange conta que “A Hora da Estrela” é um de seus livros favoritos. “O brilho de sua voz e sua disposição em ser selvagem me estontearam.”

ESTRELAS ERRANTES

– Preço R$ 89,90 (336 págs.); R$ 44,90 (ebook)

– Autoria Tommy Orange

– Editora Rocco

– Tradução Bruna Miranda