MADRI, ESPANHA (FOLHAPRESS) – Um inquieto homem de batina era visto em frenético ir e vir pelas escadas e corredores prédio da Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madrid enquanto figurões do Judiciário brasileiro participavam de um seminário internacional da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) nesta semana.
O motivo da correria do padre Antônio Guerra era se fazer ver na plateia enquanto o alto escalão da Justiça se apresentava uma tarefa que o padre afirmou à reportagem não ter ligação com a OAB, o que foi confirmado pela ordem.
“Na realidade, [sou] amigo das autoridades, dos ministros, desse ou daquele. (…) [Mas] Eu não tenho cargo, não tenho nenhuma missão oficial”, disse Guerra à reportagem, deixando em aberto qual seria, então, o real motivo de sua participação no evento.
Ele afirmou integrar a associação católica Arautos do Evangelho, e outros dois religiosos que o acompanhavam usavam túnicas características da instituição. O grupo ultraconservador foi fundado a partir da TFP (Sociedade de Defesa da Tradição, Família e Propriedade), organização conhecida por apoiar a ditadura militar no Brasil.
Os Arautos travam uma série de disputas judiciais pelo Brasil e estiveram envolvidos em polêmica durante o pontificado do papa Francisco, após vazar vídeo em que um homem chamava o papa de emissário do demônio, enquanto integrantes do grupo observavam e riam.
Nada disso foi mencionado nos três dias do seminário da OAB, de 5 a 7 de maio, que cobrou R$ 9.000 pela inscrição da plateia.
Participaram do evento 14 ministros do STJ (Superior Tribunal de Justiça), advogados, ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) e representantes do governo brasileiro, como o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski.
Padre Guerra sabia de cor os nomes de vários magistrados presentes, mesmo não sendo formado em direito.
“Eu conheço [muitas autoridades] não só como religioso, conheço o meio deles [jurídico], [mas também] do empresariado, das favelas, da periferia Não é a minha missão, não é o meu trabalho atuar com eles. Eu nem vivo em Brasília”, afirmou ao ser indagado pela reportagem sobre o trânsito que aparentava ter.
Magistrados de várias instâncias demonstraram entusiasmo com sua presença. A quem quisesse ouvir, no corredor da faculdade, ele mencionou supostas pressões para estar presente.
“A filha do ministro [e presidente do Supremo Tribunal Federal Roberto] Barroso é palestrante. Ele [Barroso] puxa as minhas orelhas se eu não estiver quando ela começar”, afirmou a outros participantes.
Na verdade, a advogada Luna Van Brussel Barroso, filha do presidente do Supremo atuou como mediadora de um painel sobre “novos desafios dos contratos de infraestrutura”.
“Eu sou amigo da filha [do ministro Barroso], que agora é mãe. E estava lá prestigiando. (…) Eu sou amigo de todos. E como na sala 1 estava com o moderador [ministro do STJ] Benedito [Gonçalves], que estava com a esposa, [que é] católica”, disse à Folha.
Passada a fala inicial de Luna, Guerra deixou a sala e disparou escada acima para aparecer na plateia enquanto Benedito Gonçalves dava início aos trabalhos da outra mesa.
No amplo auditório principal, o padre se sentou estrategicamente para estar à vista dos oradores do painel “infraestrutura, concorrência e política ambiental”. A posição privilegiada foi destacada por Lucas Asfor, diretor da ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres).
“[Padre Guerra é] Um amigo de todos, que sempre tem nos abençoado com a sua alegria”, disse Asfor. Mais citações colecionadas pelo religioso vieram de membros do Judiciário. O padre chegou a ser chamado de representante de um “poder maior”, numa referência a Deus.
Durante o primeiro painel na quarta (7), a desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro Flavia Romano economizou tempo e saliva ao saudar as autoridades mencionando o padre. “Ele é o representante da maior autoridade”, disse em tom de brincadeira, arrancando risadas da plateia.
BÊNÇÃOS EM ROOFTOP
No segundo dia de evento, na noite de terça (6), Guerra esteve no coquetel onde a nata da Justiça celebrou a reunião na Europa.
O encontro, regado a vinhos branco e tinto e cerveja, além de petiscos tipicamente espanhóis, ocorreu na cobertura do Ginkgo Restaurante e Sky Bar, que tem uma vista de quase 360º do centro da capital.
Além de Lewandowski, marcaram presença o ministro do STF Gilmar Mendes e a esposa, Guiomar Mendes, e o chefe da Polícia Federal, Andrei Rodrigues. Enquanto o padre perambulava pela festa, alguns convidados pediam-lhe a bênção.
A Folha só conseguiu entrevistá-lo ao fim de uma missa que ele celebrou na Igreja de San Pascual, no Paseo de Recoletos, uma região nobre da capital espanhola. A cerimônia foi anunciada por Guerra como a clausura do seminário.
E, embora representante da OAB consultado pela reportagem tenha negado qualquer ligação da ordem com o padre, a organização do evento enviou, por email, dois lembretes sobre a missa aos participantes.
“A Igreja Católica é universal e tem que estar em todos os lugares”, disse, na conversa de pouco mais de oito minutos com a reportagem. “E nosso senhor Jesus Cristo disse que ele veio para salvar a todos. É necessário que a Igreja Católica esteja nas periferias, junto aos menos favorecidos, mas também [junto] aqueles que tomam decisões. Por exemplo, o Judiciário no Brasil está, hoje, com um papel preponderantíssimo.”
Segundo o padre, é importante que a Igreja Católica, num “momento histórico no Brasil, tenha uma presença no Judiciário, assim como os evangélicos têm no Congresso”. “Eles [os evangélicos] estão superatuantes e é necessário que a Igreja Católica também tenha a sua presença”, completou.
A Folha então quis saber o quão complexo é para o padre dividir religião e política. “Trata-se de elevá-los para as coisas de Deus, sobrenaturais, se aproximarem de Deus. Em nenhum momento eu toquei em política, direito nem nada. O meu papel é levar uma mensagem espiritual e não entrar em política. Para mim, é tranquilo”, afirmou.