SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Enfurnada entre as caixas de um depósito empoeirado, uma nordestina de 19 anos se esconde do mundo ao trabalhar como datilógrafa. Das noites na pensão apertada às tardes com o namorado abusivo, Macabéa é invisível aos olhares de São Paulo.
Seja nas páginas de Clarice Lispector, seja na adaptação da cineasta Suzana Amaral, a garota de “A Hora da Estrela” traz reflexões sobre o feminino por onde quer que passe. Mas se na ficção ela caminha rumo à tragédia, sua intérprete escolheu caminhos opostos.
Foi aos 21, idade próxima à da criação clariciana, que Marcélia Cartaxo conseguiu seu primeiro papel em um filme. Hoje, aos 61, a atriz retorna ao universo da autora como Glória Hartman, artista plástica que sofre para ser devidamente reconhecida. Ela anda pelas ruas em que a escritora viveu, no Recife, e transforma “Lispectorante” em um manifesto sobre si.
Dirigido por Renata Pinheiro, o longa-metragem, em cartaz nos cinemas, usa a poética de Lispector para libertar a personagem de Cartaxo. Fantasias se inscrevem sobre a realidade e espelham os seus impulsos. Passado e presente se encontram e Hartman se apaixona por um homem mais novo, um músico mambembe que aparece em sua vida.
São recursos que intercalam a psicologia de Clarice à trajetória da atriz e naturalizam novos paradigmas. Em um período em que ser mulher ganhou novos significados, o sonho da Macabéa aspirante a atriz, virgem e fã de Coca-Cola, se concretiza para além da tela.
“As pessoas podem ser o que elas bem entenderem. Eu já vivi várias mulheres da sociedade, cada uma com sua importância. Independente da forma, da cor, são sempre grandiosas em sua simplicidade”, diz Cartaxo, que deu os primeiros passos no teatro.
Pouco antes de sua estreia nos cinemas, a paraibana aprendia a dominar os palcos e viajava pelo Brasil afora. Assim que se apresentou na capital paulista, atraiu uma admiradora. Da plateia, Amaral encontrou a intérprete da sua protagonista, que venceria o Urso de Prata, prêmio máximo do Festival de Berlim.
Ela diz que o desejo de atuar surgiu como uma segunda natureza. Quando criança, passava os dias na rua onde brincava e no açude em que mergulhava com os amigos. Da água, seguiam para o parque de diversões de Cajazeiras. Surgiam criações, notas de cigarro viravam dinheiro fictício e o Carnaval alimentava as primeiras histórias da trupe.
“Marcélia é um ser de outro planeta. Ela trouxe uma intuição fundamental para lidar com essa personagem à beira da crise. Existe nela uma crença cênica disposta a transformar completamente a realidade”, afirma Pinheiro, reconhecida por misturar o drama e gêneros como o terror e a ficção científica.
No caso de “Lispectorante”, parte do surrealismo se traduz na libertação do corpo. Em determinada sequência, Glória se deita sobre a superfície de um palco vibratório. De mãos dadas, mulheres formam um círculo ao seu redor e gemem cada vez mais alto num prazer coletivo.
Pinheiro ficou chocada ao descobrir que dirigiu a primeira cena íntima de Cartaxo. “Por que a uma mulher que já passou da meia-idade não é atribuída a chance de amar e de se satisfazer? A maturidade feminina ainda é vista como tabu no cinema brasileiro. Busquei desenvolver uma personagem ativa e pensada para a idade de Marcélia, sem a rejuvenescer.”
Embora novas experiências continuem aparecendo, a versatilidade da atriz se fez presente pouco depois do sucesso de “A Hora da Estrela”. De “Madame Satã” colaboração com Karim Aïnouz que se repetiria em “O Céu de Suely” às séries de streaming ela retornará para a nova temporada de “Cangaço Novo” e estará em “Guerreiros do Sol”, do Globoplay, Cartaxo atravessou vários estilos.
Em 2010, a artista se uniu à diretora Paula Gaitán em um experimento pelas paisagens naturais do “Agreste”. Sua voz toma a aridez da região para ressignificar territórios que definem a terra em que nasceu. Imagens de corpos femininos se sobrepõem ao seu e a colocam como representante de incontáveis personalidades.
“Marcélia aparece como uma coreógrafa de si mesma, em um conjunto de performances lúdicas. Ela encontra na natureza um palco à sua disposição”, diz Gaitán. Sua filmografia costuma romper narrativas tradicionais e explorar o inconsciente.
“Agreste me deu outra dimensão de como existir. Tenho certeza de que permanecerá como um legado importante. Ele traz memórias de um mundo mais verde, com o qual estão tentando acabar. Me fez sentir mais a vida”, afirma Cartaxo.
Suas primeiras incursões na direção também exploram suas raízes. Ancorados por conflitos familiares, fez três curtas-metragens que utilizam a seca e questões socioambientais para tratar do emocional. A atriz vê a importância do formato curto para festivais de cinema e o tem como ponte para conhecer novos produtores.
Foi assim, inclusive, que conheceu Allan Deberton, quando aceitou um papel no primeiro curta do cineasta, “Doce de Coco”, de 2010. Da amizade que surgiu entre os dois, veio uma promessa ela seria Pacarrete em um futuro longa do diretor.
O filme homônimo sobre a bailarina cearense, considerada louca no final de sua vida, só rolaria quase uma década depois, mas veio em bom tempo para tirar Cartaxo da mesmice. Na época, a artista se sentia escamoteada para papéis coadjuvantes e que simplificavam a figura da mulher nordestina.
Durante o set, a personagem envolveu a atriz em uma exigente preparação física. No início do processo, as rezas bastaram para pedir a bênção da dançarina, que compreendia cada vez melhor em corpo e voz. Às vésperas do primeiro dia de gravação, ela foi ao túmulo e lhe ofereceu um champanhe.
A oferenda rendeu à produção oito kikitos no Festival de Gramado, incluindo os troféus de melhor atriz, melhor filme e melhor direção, além de aclamação em países como a China. O sucesso ainda impulsionou o protagonismo de Cartaxo em filmes como “A Praia do Fim do Mundo” e agora ela se prepara para viver sua mãe numa cinebiografia sobre sua própria trajetória.
À frente do projeto, Deberton espera o início de uma grande audição nacional para encontrar sua Marcélia. O objetivo é descobrir novas estrelas e recriar o pontapé que reuniu a atriz, Clarice Lispector e Suzana Amaral.
As filmagens devem ter início em 2026 e a trama juntará a literatura, o cinema e a autodescoberta de Cartaxo enquanto artista, indo até sua celebração em Berlim. “A história de Marcélia é também a de muitos outros artistas da Paraíba e merece chegar ao grande público”, diz o diretor.
Além de revirar memórias de infância para colaborar com o roteiro, a atriz elenca vivências que pretende explorar pela direção, em seus primeiros longas-metragens. Ela cita a pluralidade dos ciganos de Cajazeiras e a história de Maria Caboré, mulher negra, subjugada pela sociedade, que é hoje lembrada como santa popular.
“Minhas personagens nunca vão ser as mocinhas bonitinhas de hoje. Elas carregam uma série de vivências. São personagens vividas e que têm muitos sonhos. São esses sonhos que eu quero resgatar”, afirma ela. “A tela é aquilo que precisamos pintar. Enquanto eu viver, vou pintar.”
LISPECTORANTE
– Quando Em cartaz nos cinemas
– Classificação 14 anos
– Elenco Marcélia Cartaxo, Pedro Wagner e Tavinho Teixeira
– Produção Brasil, 2024
– Direção Renata Pinheiro