SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O monsenhor Marcos Pavan, foi o primeiro não-italiano da história a se tornar diretor musical da Capela Musical Pontifícia, a Capela Sistina.
Nomeado pelo papa Francisco em 2019, o padre paulistano passou a ser a principal autoridade musical do Vaticano, sucedendo o italiano Massimo Palombella, que gravou os melhores álbuns do grupo, que atua desde 1481 e tem diretores musicais desde o século 19. Palombella participa do album “Habemus Papam” (selo Deutsche Grammophon), que registra ao vivo a eleição de Francisco. Ele foi retirado do cargo após acusações de corrupção.
Ex-integrante do Coro Lírico do Municipal de São Paulo, Pavan dirigiu a música executada nas missa dos funerais do papa emérito Bento 16 e, neste ano, enfrentou, pela primeira vez, a maratona de nove dias de missas pelos funerais de Francisco, um papa ainda no cargo, e o ofício que fechou a porta do conclave.
Ordenado padre na diocese do Campo Limpo, na zona sul de São Paulo, Marcos Pavan estudou canto gregoriano na capital paulista e em Nova York, e se tornou uma autoridade na música litúrgica da Igreja Católica.
Ele falou à reportagem por telefone com exclusividade, de Roma, sobre como foi sua relação com Francisco, que o nomeou para a Capela Sistina, e o que espera do conclave.
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PERGUNTA – Como foi assumir o cargo de diretor musical na despedida do papa?
MARCOS PAVAN – Toda música que a gente faz é no âmbito de uma liturgia, então faz parte de uma realidade maior, celebrativa segundo as regras da Igreja. Meu trabalho é encontrar essa expressão musical: aí você joga com aspectos diferentes: a tradição, a inovação, a solenidade talvez em oposição ao aspecto da simplicidade, são várias coisas, sempre respeitando a orientação do Concílio Vaticano 2º, que traz textos muito inclusivos, que se eabrem para a novidade sem renunciar à tradição. Tradição não é adorar as cinzas do passado, mas manter o fogo vivo, né? Então, a escolha final foi essa, como sempre: o esqueleto do canto gregoriano, porque ainda é o canto oficial da igreja de rito latino, e as polifonias. No funeral, tivemos Canto Gregoriano, Palestrina (1525-1594) e o contemporâneo Giuseppe Liberto. Logo, foi século 9, século 16 e século 21. Abrangeu um bom período na música, mas com harmonia entre elas.
P – Como e quando você recebeu a notícia da morte do Papa?
MP – Eram 9h30 da manhã. Eu estava em casa, e o mestre das celebrações litúrgicas (monsenhor Diego Ravelli) me telefonou e falou que o Papa tinha morrido, daí a gente já colocou toda a máquina pra funcionar. Nesses últimos meses ele piorou muito, então já estava tudo pronto. Eu já tinha ensaiado com coro as coisas mais difíceis e tal, mas se lembre que a liturgia é sempre ligada ao momento do ano. Então alguns textos você não pode prever, e muito trabalho fica pra última hora.
P – Como era a sua relação com o Francisco nos últimos anos?
MP – Duas, três vezes por ano havia ocasiões em que eu me encontrava com o Papa. Sempre foi uma ótima relação. Em 31 de dezembro do ano passado, ele ainda quis encontrar o coro e agradecer, na Basílica de São Pedro, e cumprimentou a criançada. Sabe aquele jeitão dele, né? De fazer positivo com a mão, assim, quando passava diante do coro e tal. Sempre muito simpático, muito bom com as crianças e tal. Para ele era quase uma necessidade psíquica mesmo de estar em contato com as pessoas e nunca estar isolado,
P – Sobre as preferências musicais do Francisco, como isso orientou o teu trabalho?
MP – Ele era muito atento à participação do povo na liturgia e nos momentos de oração fora da liturgia. A cada ano, os papas, no dia 8 de dezembro, vão na Praça de Espanha, em Roma, onde tem aquela coluna com uma imagem de Nossa Senhora em cima. E ele gostava dessas músicas religiosas mais tradicionais em italiano, então a gente fez um monte de arranjos dessas músicas para coro a quatro vozes, com um traço mais erudito. Você via todo o pessoal na praça cantando, sobretudo os de mais de idade. Isso também foi uma coisa que teve um desenvolvimento maior com o Francisco
P – O senhor é uma testemunha privilegiada da história. Como é esse momento na sua carreira?
MP – Às vezes, quando eu falo para as crianças, que eu falo para as crianças do coro, eu falo, “Olha, prestem atenção, vocês vão participar de um evento histórico etc.” Daí é que eu também me dou conta que a gente está vivendo um momento histórico. Por enquanto, estou trabalhando 14 horas por dia, não dá tempo para cair a ficha.
P – Quais são suas lembranças mais pessoais de Francisco?
MP – Quando o mestre de celebrações propôs o meu nome para ele, para ser nomeado mestre da Sistina, Francisco fez questão de que a data da nomeação fosse no dia 22 de novembro, Dia de Santa Cecília, a padroeira dos Músicos. Foi muito delicado da parte dele.
Mas teve também a Covid. Aqui na Itália a coisa foi feia e tivemos um lockdown longo. Com todo mundo preso em casa, ele fez uma celebração na Praça de São Pedro vazia, numa Sexta-Feira Santa. Éramos um grupo de cinco cantores, distanciados, com máscara. E eu me lembro dele vindo em nossa direção, e ele caminhava bem naquela época. Alguns dos nossos cantores tinham cantado a Paixão de manhã. E ele disse que gostou muito, cumprimentou os cantores, ofereceu uma bala de hortelã pra gente. Francisco sempre tinha essas balas no bolso, porque eu acho que quando ele falava muito, a garganta dele secava. Ficamos os cinco cantores e ele sozinho ali naquele átrio. E depois ele foi pra praça fazer aquela oração que ficou na história, aquela imagem dele sozinho na praça de São Pedro, representando toda a humanidade naquele momento ali, em um momento de uma pandemia mundial. Guardo isso com muito carinho.
P – O que o senhor espera do próximo papa?
MP – Na verdade, a gente espera sempre que cada Papa tenha sua personalidade. Não adianta, não há dois papas iguais. Nem adianta querer imitar, porque daí fica uma caricatura. Não vai vir outro Francisco. Mas com certeza vai ter uma continuidade, porque a Igreja vai caminhando na história e ninguém caminha pra trás. A Igreja tem que caminhar sempre pra frente, lógico. Segundo a sensibilidade desse novo Papa, ouvindo sempre os outros bispos, tudo isso, mas ela tem que proclamar o evangelho de Cristo nas circunstâncias concretas em que ela vive. E as circunstâncias continuam a ser as mesmas.
P – A música da eleição do próximo papa vai virar álbum, como virou a do Francisco?
MP – Não sei. Primeiro vamos ver como vai ser a qualidade da gravação porque cantar na praça nem sempre é uma coisa fácil, depende até do vento. Tudo que a gente canta é gravado porque a Rádio Vaticana, que documenta tudo. Para um disco você tem que fazer um contrato naturalmente com uma gravadora, mas ainda não estou pensando nisso.